O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalização, pela intelectualização e, sobretudo, pelo “desencantamento do mundo” levou os homens a banirem da vida pública os valores supremos e mais sublimes. Tais valores encontraram refúgio na transcendência da vida mística ou na fraternidade das relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados. Nada há de fortuito no fato de que a arte mais eminente de nosso tempo é íntima e não monumental, nem no fato de que, hoje em dia, só nos pequenos círculos comunitários, no contato de homem a homem, em pianíssimo, se encontra algo que poderia corresponder ao pneuma profético que abrasava comunidades antigas e as mantinha solidárias. Enquanto buscamos, a qualquer preço, “inventar” um novo estilo de arte monumental, somos levados a esses lamentáveis horrores que são os monumentos dos últimos anos. E enquanto tentarmos fabricar intelectualmente novas religiões, chegaremos, em nosso íntimo, na ausência de qualquer nova e autêntica profecia, a algo semelhante e que terá, para nossa alma, efeitos ainda mais desastrosos. As profecias que caem das cátedras universitárias não têm outro resultado senão o de dar lugar a seitas de fanáticos e jamais produzem comunidades verdadeiras. A quem não é capaz de suportar virilmente esse destino de nossa época, só cabe dar o conselho seguinte: volta em silêncio, sem dar a teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e recolhimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas Igrejas. Elas não tornarão penoso o retorno. De uma ou de outra maneira, quem retorna será inevitavelmente compelido a fazer o “sacrifício do intelecto”. E não serei eu quem o condene, se tiver, verdadeiramente, força para fazê-lo. Realmente aquele sacrifício, feito para dar-se incondicionalmente a uma religião, é moralmente superior a arte de fugir a um claro dever de probidade intelectual, que se põe quando não existe a coragem de enfrentar claramente as escolhas últimas, e se manifesta, em seu lugar, inclinação por consentir num relativismo precário. A meu ver, esse dom de si é mais louvável que todas as profecias de universitários incapazes de perceber claramente que, numa sala de aula, nenhuma virtude excede, em valor, a da probidade intelectual. Essa integridade nos compele a dizer que todos – e são numerosos – aqueles que, em nossos dias, vivem a espera de novos profetas e de novos salvadores se encontram na situação que se descreve na bela canção de exílio do guarda edomita, canção que foi incluída entre os oráculos de Isaías:
“Pergunta-me de Seir:
Vigia, que é da noite?
Vigia, que é da noite?
O vigia responde:
Vem a manhã e depois a noite.
Se quereis, interrogai,
Convertei-vos, voltai!”
O povo a quem essas palavras foram ditas não cessou de fazer a pergunta, de viver à espera há dois mil anos, e nós lhe conhecemos o destino perturbador. Aprendamos a lição! Nada se fez até agora com base apenas no fervor e na espera. È preciso agir de outro modo, entregar-se ao trabalho e responder às exigências de cada dia – tanto no campo da vida comum, como no campo da vocação. Esse trabalho será simples e fácil, se cada qual encontrar e obedecer ao demônio que tece as teias de sua vida.
Max Weber, “A Ciência como Vocação” [1918]. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Ed. Cultrix.
“Pergunta-me de Seir:
Vigia, que é da noite?
Vigia, que é da noite?
O vigia responde:
Vem a manhã e depois a noite.
Se quereis, interrogai,
Convertei-vos, voltai!”
O povo a quem essas palavras foram ditas não cessou de fazer a pergunta, de viver à espera há dois mil anos, e nós lhe conhecemos o destino perturbador. Aprendamos a lição! Nada se fez até agora com base apenas no fervor e na espera. È preciso agir de outro modo, entregar-se ao trabalho e responder às exigências de cada dia – tanto no campo da vida comum, como no campo da vocação. Esse trabalho será simples e fácil, se cada qual encontrar e obedecer ao demônio que tece as teias de sua vida.
Max Weber, “A Ciência como Vocação” [1918]. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Ed. Cultrix.
8 Comments:
At 3:49 PM,
Anônimo said…
acho que é um trecho um tanto aterrorizador, talvez pelo fato de que é extremamente atual mesmo sendo do início do sec. 20. eu mejo nesse texto. existe um problema: é possível criar um monumento da intimidade? penso nisso no sentido que não seria necessário sacrificar o intelecto para ter um retorno á uma espécie de intimidade. penso també que não necessariamente ruim o fato "de que, hoje em dia, só nos pequenos círculos comunitários, no contato de homem a homem, em pianíssimo, se encontra algo que poderia corresponder ao pneuma profético que abrasava comunidades antigas e as mantinha solidárias." não sei se entendi o texto corretamente, mas eu vejo uma libertação em a arte não ter que ser monumental e solidariedade existir nesses pequenos círculos comunitários.
joão, seu tiver viajando muito me avisa.
At 3:51 PM,
Anônimo said…
foram tantos erros de digitação que eu nem vou corrigir. isso que dá não reler. se não entenderem alguma coisa perguntem.
At 4:47 PM,
Anônimo said…
Luiz, o texto é atual justamente porque ele trata de uma condição de nossas vidas que permanece até hoje. O diagnóstico, e portanto, a descrição de uma situação de fato, de Weber é o seguinte: o mundo moderno, pelo menos desde o século xix, se caracteriza pela culminância de um longo processo de "desencantamento" (o progressivo controle técnico-científico da natureza desfez aquele tipo de relação "mágica" que o homem pré-moderno tinha com a natureza) e pela perda de um referencial de unidade e estabilidade no mundo dos valores que era fornecido pelo cristianismo. Weber parte do ponto em que "Deus morreu", ou seja, em que o Deus com maiúscula, único, do cristianismo deixou de ser uma unanimidade, cedendo lugar a uma infinidade de "deuses". É como se a perda pelo cristianismo de seu caráter absoluto tivesse restaurado o politeísmo. Há agora no plano dos valores uma pluralidade de valores vivendo, na maioria das vezes, em conflito entre si. Nesta situação, algo daquela experiência, mágica, mística, de transcendência espiritual transferiu-se da vida comunitária das Igrejas para o mundo privado, da intimidade. Não é à toa que o amor romântico assume uma importância tão proeminente na nossa cultura desde o século xix. A arte reflete isso, deixando de ser “monumental”, no sentido de “monumento” mesmo, ou seja, destinada a louvar e transmitir à posteridade a memória de algo notável, para tornar-se “íntima”, voltada para temas ligados à relação fragmentada de pessoa à pessoa. Ou seja, a arte não se preocupa mais em dar “exemplos”, a ensinar aos homens aquilo que importa sempre e universalmente, porque isto exigiria aquela velha unidade no plano dos valores desfeita na modernidade. Bem, isto é um diagnóstico, esta unidade, para Weber, se perdeu e não pode ser restaurada, qualquer tentativa de fazê-lo implicaria, necessariamente, em violência. O esforço de produzir novas profecias capazes de restaurar um visão de mundo única está condenado ao fracasso. As experiências totalitárias (o facismo e o comunismo) do século xx são um exemplo disto (se ao menos tivessem ouvido o Weber!). É claro que há sempre a possibilidade de voltar para as velhas igrejas, mas este retorno, no mundo moderno, representa, para Weber, uma fuga, uma tentativa quase covarde de escapar à condição moderna, e que exige um “sacrifício intelectual”, uma aceitação passiva de um valor. Mas que, de qualquer forma, é, pelo menos, melhor do que tentar inventar novas profecias. Enfim, a solução que o Weber está propondo, ao contrário, é: (a) a resignação a esta condição, ou seja, tornar-se consciente de que o mundo moderno é o mundo do politeísmo dos valores e que não se pode restaurar a unidade neste plano; (b) aceitar (a) não deve implicar em relativismo passivo, mas numa escolha consciente de um destes valores e entregar-se ao trabalho sob este signo - “encontrar e obedecer ao demônio que tece as redes de sua vida”.
At 4:08 PM,
Anônimo said…
obrigado pelo esclarecimento. tenho que pensar um pouco sobre qual demônio eu estou aceitando e se eu quero realmente aceitá-lo. mas não quero cair num fatalismo. tenho uma certa dificuldade com os valores cristãos desenvolvidos no discurso do weber, por mais que esses valores cristãos seriam impossíveis de existir no nosso tempo. será que num ficou datado o discurso do weber?
At 2:31 AM,
CFagundes said…
Meu Deus, meu Deus! Quantas abóboras desperdiçadas! Guarde minha dona Xêpa! Cá com meus botões, e meus pentelhos entrelaçados no frescor do fungo de ricota da circunferência de minhas amêndoas silvetres, encapadas por um fôfo e elástico saco escrotal, me pergunto: Vale a pena a coçadinha?
Eu acho que não. A visão de fifilósofos abstémicos do século taltaletal, e de seus intérpretes, sobre nossa maçante comunidade macadâmica, que torna sociólogos, pizzaiolos e especialistas de rebanho em bezerras desmamadas, não desprovendo-as de uma ideologia romantica, me leva a concluir: o Polvo da Arte precisa de mandioca!
O que quero dizer na verdade é que o Weber faz total sentido, até porque não estamos no século taltaletal.
Beijocas pro povo sofrido do Nordeste.
At 2:36 AM,
CFagundes said…
Peço desculpas pela arrogância ignorante. É claro que Weber faz total sentido.
Beijocas pro povo sofrido do nordeste.
Saravá.
At 8:41 PM,
s said…
quem disse que a racionalidade tècnico-cientifica è "não encantamento"?
ninguem?
beleza... porque não è.
At 10:45 AM,
Anônimo said…
Oi, Salvador, bem-vindo a esse blog meio abandonado. Quanto ao "desencantamento", entendo a sua objeção e acho que vc tem toda a razão. Acho ainda que o Weber, de uma certa forma, concordaria com vc. Explico-me: lembre-se que "magia" tem um sentido mto particular no Weber, ela implica numa certa relação direta com o mundo físico que, em função do processo de racionalização técnico-científica, é como que substituída pela crença de que poderíamos controlar o mundo natural pela previsão. No entanto, esse processo não tem nada de virtuoso no sentido de dotar o mundo de mais "sentido", porque a própria ciência em si é desprovida de sentido. É um eterno caminhar para frente, em que cada novo passo, cada nova "descoberta", apaga os de trás e está, ele mesmo, destinado a ser apagado pelo próximo. E, com isso, o "sentido" está sempre sempre no infinito, inalcançável para uma vida humana. O resultado disso para aqueles que acreditam no progresso técnico científico, e portanto, a maioria dos europeus do começo do séc. XX, é que a sua vida é como que esvaziada de "significado". Passam a viver sob o "encanto" de uma miragem.
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