A rotina tem seus encantos

terça-feira, outubro 24, 2006

Os outros formam o homem; eu o descrevo, e reproduzo um homem particular muito mal formado e o qual, se eu tivesse que moldar novamente, em verdade faria muito diferente do que é. Mas agora está feito. Ora, os traços de minha pintura não se extraviam, embora mudem e diversifiquem-se. O mundo não é mais que um perene movimento. Nele todas as coisas se movem sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, e tanto com o movimento geral quanto com o seu particular. A própria constância não é outra coisa senão um movimento mais lânguido. Não consigo fixar o meu objeto (ou seja, eu mesmo). Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o neste ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem; [...] Daqui a pouco poderei mudar, não apenas de fortuna mas também de intenção. Este é um registro de acontecimentos diversos e mutáveis e de pensamentos indecisos e, se calhar, opostos: ou porque eu seja outro eu, ou porque capte os objetos por outras circunstâncias e considerações. Seja como for, talvez me contradiga; mas, como dizia Dêmades, não contradigo a verdade. Se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em prova. (Montaigne, Ensaios; livro III, cap. II, [1588]).

6 Comments:

  • At 12:46 PM, Anonymous Anônimo said…

    porra que texto foda. iluminador. esse constante movimento de tudo, essa incapacidade de reter esse movimento e essa inserção dele próprio dentro desse movimento me parece uma forma tocante de se estar no mundo e de perceber a sua relação com o que está ao seu redor. só não entendi muito bem a parte de não contradizer a verdade e o que vem depois disso no texto. se puder esclarecer...

     
  • At 4:47 PM, Blogger leonardo marona said…

    não existe muita gente com a honestidade desse cara. luiz, seu desnaturado de uma figa, o que eu entendi de não contradizer a verdade é que a verdade talvez seja a contradição de quem a procura, mas a procura contraditória nunca contradiz a verdade. me enrolei, diz aí, João?

    ps: luiz, cadê o roteiro? acho que o emprego deu pra trás (eu, por enquanto, ainda não). beijo. dezembro?

     
  • At 11:10 AM, Anonymous Anônimo said…

    Este Montaigne é um dos mais fascinantes mistérios do mundo moderno, justamente por ter escrito 3 volumes, 1500 páginas, sobre... nada. Perto dos 40 anos, este erudito nobre francês abandona a vida de corte e isola-se em seu castelo, dedicando-se a escrita de um livro que, inicialmente concebido como um louvor à memória de La Boétie, seu amigo morto, acaba transformando-se num registro de si mesmo. Razão pela qual os Ensaios são tidos como a 1ª manifestação literária da subjetividade moderna, auto-centrada. Isto é absolutamente original no séc. xvi, quando a escrita ainda se inseria na tradição retórica renascentista do exemplo moral. E é engraçado, porque o Montaigne até dá exemplos, mas eles se contradizem o tempo todo, e não chegam a lugar nenhum... Até porque a intenção dele era "retratar-se por inteiro", ou seja, "pintar-se" como era de fato, sem concessões e sem ornamentos retóricos (esta é a "verdade" a que ele se refere, Leo). Esta preocupação em registrar a "verdade de si" vai obrigá-lo a dizer coisas impublicáveis para a época (como naquela passagem que eu coloquei aqui anteriormente, sobre o apetite sexual feminino), razão pela qual seria condenado pelo Index da Contra-Reforma no séc. XVII. Agora, o interessante é que ele próprio, durante o processo de escrever-se, vai se dando conta da dificuldade de se "fixar", assim como os "rochedos do Cáucaso" o eu está tb em permanente movência. E chega um momento em que ele vai perceber que não tanto ele escreveu o livro como o livro escreveu ele. "Ao modelar sobre mim esta figura, tantas vezes foi-me preciso ajustar e compor para transcrever-me que o molde se consolidou e de certa maneira se formou a si mesmo. (...) Não fiz meu livro mais do que meu livro me fez (mon livre m'a faict)."

     
  • At 12:14 PM, Anonymous Anônimo said…

    Putz, agora que comecei vai ser difícil parar... O que é que está em jogo aqui? É a própria idéia moderna de literatura. Esta vai se construir nos sécs xviii e xix conforme a intenção inicial de Montaigne de "registrar-se por inteiro". Ou seja, a literatura (e a arte em geral), como a entendemos ainda hoje, define-se como expressão da intimidade, de uma "verdade de si em si". Isto é, pensamos, quando escrevemos, que estamos registrando algo que já está dado previamente, fixado num núcleo interno, em nós mesmos. Esta idéia, de um "sujeito criador" que produz o mundo a partir do fluxo de uma energia interna, individual, não se restringe ao campo estético, mas se encontra em todas áreas da "cultura ocidental" (veja-se as ciências por exemplo). A própria noção de "autoria" vem daí. Esta idéia, muito arraigada, razão pela qual a tomamos por "natural", é, contudo, muito recente (Daí, por ex., a grande dificuldade dos marchants de arte indentificarem quais os quadros de "Rembrandt" são de fato de Rembrandt, questão que não existia no séc xvii quando os discípulos participavam da feitura das "obras"). Enfim, o que eu quero dizer é o seguinte: Montaigne muito antes desta idéia ter se consolidado já a manifesta, porém, com um "furinho". Quero dizer: sua genialidade lhe permite não só adiantar a concepção moderna de literatura como produzir tb uma abertura nela, a abertura para o Outro. Percebe que o tal núcleo interno, a "essência", a verdade de si em si, está se movendo, mudando, a medida que o eu interage com o mundo. "mon livre ma faict". Em termos grosseiros: fazemos o que somos mas o que fazemos tb nos faz.

     
  • At 1:06 PM, Anonymous Anônimo said…

    obrigado pela aula joão. montaaigne passou a me interessar muito.

    leo estou pensando aqui como a gente vai conseguir fazer esse filme. quero fazer em janeiro. te mando um e-mail com mais detalhes assim que der.

    beijos pros dois

     
  • At 11:15 AM, Anonymous Anônimo said…

    que bom, Luiz, isso que importa: "sapere aude". Mande-nos tb alguma impressão daí para publicarmos. Leo, o emprego deu pra trás? Será que foi aquela mocinha ou as cartas que mentiram? Se há roteiro mandem pra cá.

     

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