A rotina tem seus encantos

quinta-feira, outubro 25, 2007

“Existe felicidade no mundo, Alec, mesmo que ela voe como um sonho. Mas no seu caso, ela passou longe. Como um estrela, fora da alcançe da toupeira. Não a “satisfação pela aprovação”, não louvor e avanço e conquista e poder, não submissão nem capitulação, mas o júbilo da fusão. Fundir o eu no próximo. Como uma ostra recebe um corpo estranho e é ferida por ele e o transforma em pérola, enquanto a água morna ao redor envolve tudo. Você jamais provou esta fusão, nem uma vez em sua vida. Quando o corpo é um instrumento musical nas mãos da alma. Quando o Outro e eu coabitamos e nos tornamos um único coral. E quando o gotejar da estalactite lentamente faz crescer a estalagmite até que ambas se tornem uma.
Pense, por exemplo, que são precisamente sete e dez de uma noite de verão em Jerusalém. As cadeias de colinas tocadas pelos raios do crepúsculo. A última luz começa a dissolver as linhas de pedra das ruas como se as despisse de sua petrificação. O som de uma flauta árabe sobe do uádi num gemido prolongado, além da alegria e da tristeza, como se a alma das montanhas tivesse saído para adormecer os corpos antes de partir para a jornada noturna. Ou duas horas mais tarde, quando surgem estrelas no céu do deserto de Judá e a silhueta do minarete ergue-se ereta entre as sombras dos casebres. Quando os seus dedos tocam o tecido do estofado áspero, e diante de uma janela uma oliveira de prata recebe uma dádiva de luz do abajur da mesa do quarto, e por um momento cessa o limite entre a ponta do dedo, e a coisa tocada e aquele que toca é o tocado e também o toque. O pão em sua mão, a colher de chá, o copo de chá, as coisas simples, mudas, são subitamente cobertas por uma tênue radiação primordial. Iluminadas de dentro de sua alma, e iluminadas de volta. A alegria do ser e sua simplicidade descem e cobrem tudo com o mistério das coisas que existiam antes da criação do conhecimento”

(Amós Oz, “A Caixa Preta”. Tradução Nancy Rozenchan. Cia. das Letras, 2007. p. 126-127).