A rotina tem seus encantos

sexta-feira, janeiro 19, 2007

“Mas o concerto recomeçou e Swann compreendeu que não poderia retirar-se antes do fim daquele novo número do programa. Afligia-o ficar preso no meio daquela gente cuja tolice e ridículo tanto mais dolorosamente o feriam porque ignoravam o seu amor, incapazes, se o conhecessem, de por ele interessar-se e de fazer outra coisa senão sorrir como de uma infantilidade ou deplorá-lo como uma loucura, todos lho faziam aparecer sob um estado subjetivo que só existia para ele, Swann, e de que nada exterior afirmava a realidade; sofria, sobretudo, e a tal ponto que até o som dos instrumentos lhe dava desejos de gritar, de prolongar o seu exílio naquele lugar aonde Odette jamais viria, onde ninguém, onde nada a conhecia, de onde ela estaria de todo ausente.
Mas de súbito foi como se ela tivesse entrado, e essa aparição lhe foi de uma dor tão dilacerante que ele teve de levar a mão ao peito. É que o violino subira a notas altas onde permanecia como para uma espera, uma espera que se prolongava sem que o instrumento cessasse de as sustentar, na exaltação em que estava de já perceber o objeto da sua espera se aproximava, e com um desesperado esforço para durar até a sua chegada, acolhê-lo antes de expirar, manter-lhe ainda um momento com todas as suas derradeiras forças o caminho aberto para que ele pudesse passar, como se sustenta uma porta que sem isso retumbaria. E antes que Swann tivesse tempo de compreender e dizer consigo: “É a sonata de Vinteuil, não escutemos!” todas as lembranças do tempo em que Odette estava enamorada dele e que até aquele dia conseguira manter invisíveis nas profundezas do seu ser, iludidas por aquela brusca revelação do tempo de amor que lhes parecia ter voltado, despertaram e subiram em revoada para lhe cantar perdidamente, sem piedade para com o seu atual infortúnio, os refrãos esquecidos da felicidade.”

[‘No caminho de Swann’ - Proust. – p.201]

Enviado pela Dani Szwertszarf.