A rotina tem seus encantos

sexta-feira, janeiro 05, 2007

PAPEL E FOGO

(fragmentos)


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Um arco tenso fecha em 360 graus. Pai. Dentro dele, um vermelho esparramado tende às suas bordas circulares. Mãe. Esta é a auréola que coroa o filho à prisão dos seus sonhos. Há algo na morte que se assemelha a esta tensão do círculo atento aos que lhe escapam. O desespero sublinha os pés do filho, equilibrista sobre o amar e a liberdade.

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Toda molhada, a cidade faz nanquim das luzes em movimento. A noite contrasta com o asfalto, preto sobre preto. Os carros freiam amontoados por uma rua que sobe plana pelos meus olhos desiguais, as luzes se arrastando – súbito sustém, sustenidas, estridentes. Tudo pára neste assobio. Bolotas vermelhas pelo ar, sombras borradas estiradas pelas poças. Sorrio para uma eternidade torpe. Ela é linda. A tarde fora embora, suavemente, numa fumaça embaçando o horizonte, a perdida precisão do cinza, tudo quer ser um. Ela faz nanquim das luzes em movimento, ela é linda.

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Houve um determinado momento, alguém me disse quem eu era, e minha chaga abriu-se. Foi de repente, numa palavra, num gesto, num acidente qualquer, não disse muito nem disse pouco, foi além dele, para aquém de mim mesmo, eu olhava vendo o que acontecia, meus braços caindo, minhas pernas ficando para trás, correndo desesperadamente da minha fuga, eu e a minha chaga púrpura correndo pela rua, logo vejo, o borrão alastrado no meu peito, a rua nem existe mais. Uma outra marca, eu vou carregando.

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Haste corcunda atira jatos de delírios-verdade ao seu extremo – mas não larga este quase desabrochar. Nevascas de orquídeas em fileiras lamentam-se com seus olhos de fogo. Flocos amplos no contorno da visão, milágrimas, dom de detalhes. Gélida distância suspensa ao redor deste lânguido fuzuê inventado pela divindade das notas-repetições.


(daniela szwertszarf)