Meu cadáver
Balanço ao ritmo do mar, minha pele embaixo d´água está esbranquiçada. Meus pelos serpenteiam quase imperceptivelmente e meu cabelo preto, longo e denso se espalha. Meus olhos estão esbugalhados e injetados de sangue. Aos poucos sou levado pela maré em direção à praia de Guaratiba, onde um vento forte levanta areia e derruba cadeiras de plástico em volta de uma mesa. Começa uma chuva fina e eu chego à arrebentação. Levo um caldo, reapareço de cabeça para cima e sou expulso por uma última onda. Meus membros estão roxos e minha boca aberta. Em volta de mim, tatuís correm sofregamente até cavarem seus buracos e desaparecerem. A chuva pára e as nuvens pretas se esticam, dando lugar a um extenso lençol algodoado.
Durante dois dias chuvosos, sou marinado e queimado pelo mormaço. A praia está deserta, é julho de dois mil e sete e a cidade está muito fria. É o pior inverno nos últimos doze anos. Um grupo de pessoas pobres se aproxima e me avista, eu estou com a boca escancarada com dentes cariados e os olhos comidos pelas beiradas. Elas me examinam com uma curiosidade de latino-americano diante de um acidente de trânsito. Uma mulher feia, baixinha e gorda se persigna enquanto os outros se contentam em manter uma pequena distância em sinal de respeito. O efeito mais terrível do meu naufrágio fica aparente nas comissuras dos meus olhos: há sal acumulado em toda a beira, e, nas extremidades, o sal forma com a areia e minha secreção ressecada uma pasta opaca que escorreu até minhas bochechas barbadas.
Os três homens e a mulher se perguntam o que devem fazer. O mais fácil seria ignorar que me viram já que ninguém os sabia ali. A mulher sugere que me cortem o cabelo para vender, ela acha que minhas madeixas, que chegavam à cintura, poderiam render ao menos 300 reais. Todos concordaram. Tinham uma tesoura entre seus pertences recuperados no quiosque da praia e a mulher começou a cortar, enquanto os homens faziam a vigilância. Cortava tão rente que feriu meu couro cabeludo. Três pequenos filetes de sangue escorriam por minha careca depois de completo o serviço da assaltante. Partem rápido, com meu cabelo num saco do Prezunic.
Não fosse o frio e eu já estaria com um cheiro muito mais forte. Meu sangue estancado nas veias me deixa inchado e branco, mas não pareço morto. Não estou perplexo, não estou apavorado, tampouco estou sereno. Meu corpo parece ansiar por uma sutileza. Acho-me bonito careca, quando vivo sempre tive curiosidade de me ver com a cabeça raspada, mas nunca tive coragem de passar a máquina, agora estou muito bonito, como uma figura de Schiele, mas ainda não tão magro e um pouco menos intenso. Minhas pernas estão separadas e estendidas, meu braço esquerdo está sobre minha barriga e o direito ao longo do corpo. Minha cabeça cai um pouco abaixo do nível do tronco por causa de um desnível na areia, deixando meu pescoço ao ar.
Na tarde do meu terceiro dia, aparecem homens com uma maca. Um preto gordo e alto me pega pelos braços e um cearense pelas pernas. Eles estão entediados e se entreolham com um desdém de parceiros na mediocridade. Levado, minha cabeça pende para a esquerda e meus olhos esgazeados apontam para as ondas espumantes, em seguida os trabalhadores manobram e o que tenho frente a meus olhos então é uma encosta verdejante. Mais alguns passos e entro na Kombi, a porta bate num estrépito. O negão arranca, o cearense arrota, e sigo rumo ao IML.
O carro dá muitos solavancos e eu fui muito mal acomodado pelos dois, dou pulos na minha maca, minhas pernas e meus braços pululam a esmo. Passamos por um quebra-molas e o motorista não freia. Eu sou jogado para fora da minha maca, caio de bruços, quebrando um dente e esmagando meu nariz. Depois do susto, o nordestino externa um tsc de desprezo respondido por um não fode. Já estamos na Avenida das Américas.
Parece ser Domingo, o trânsito flui muito bem. Nosso carro é fechado de repente por um fusca. Minha porta é aberta por um homem com um fuzil que me levanta sem olhar para o meu rosto e me leva até o fusca. O negão e o cearense estão rendidos por dois outro homens armados com sub-metralhadoras Uzi .33. Eu sou jogado no banco de trás do carro minúsculo, os dois outros seqüestradores voltam correndo e se acomodam nos bancos da frente. Arrancamos violentamente, cantando pneu. Eles estão muito excitados, dizem que vão me esquartejar seu filho de uma puta. O plano é colocar pedaços de mim em quatro cantos de uma favela controlada pela A.D.A, eles estão na dúvida entre a vila cruzeiro e a favela dos macacos.
Me levam pra Rocinha. No sopé do morro, me levam a um beco e sou colocado num saco preto. Em seguida, Catinga me pega pelos braços, Bidu pela perna direita e Solucinho pela perna esquerda. Eles me levam até um barraco no alto do morro, e me colocam no chão. Passam o dia se comunicando com comparsas pelos telefones celulares. O plano é pra que tudo aconteça sem um tiro sequer, minhas partes vão ser colocadas discretamente em quatro pontos da favela vila cruzeiro, decidiram. Em horário de muita movimentação, Bidu, Solucinho, Catinga e talvez Guarani, não esse guarani fala pra caralho, catinga, bora chamar o Túlio. Tá. vão se misturar ao povo da favela. Minhas pernas vão ser colocadas nas duas pontas da base do morro, meu tronco vai pro alto e minha cabeça vai ser jogada em direção ao centro da favela, onde fica o entroncamento das duas ruas principais da comunidade.
Bidu está na cozinha da casa comendo um sanduíche de presunto com maionese, tem na sua mão grossa um canivete que faz rodopiar com um gesto ágil. Ele está sentado num banquinho pequeno; com o pé direito descalço prende a parte de trás do chinelo do pé esquerdo no ar para fazê-lo estalar, soltando-o na casca grossa da sola imunda. Lança olhares agitados em direção à porta da cozinha e em seguida volta o olhar para dentro, assumindo uma pose inquietante, transmitindo a certeza de que pode voltar à superfície com uma determinação inexorável. Cola algumas migalhas de pão francês ao seu dedo indicador e as leva à boca, em seguida joga seu prato na pia, sai da cozinha, e, com uma resolução firme e inquestionável na voz, convoca Catinga e Solucinho, que estão ensinando dois garotos a soltar pipa, para uma reunião.
Solucinho se senta ao meu lado, evitando tocar no plástico preto que me embrulha, por algum prurido nobre. Catinga fica em pé, recostado à parede do lado de fora da cozinha, rachada por uma infiltração. No meio da sala, Bidu dá as ordens: então Túlio leva uma perna embrulhada em jornal e deixa na entrada de um açougue que tem no começo da ladeira do canto direito. Amanhã eu falo pra ele. A outra perna Catinga vai deixar na casa de uma coroa no começo da ladeira, na outra ponta. A janela fica aberta de manhã então é só chegar sem ninguém ver que tá tranqüilo. –Porra, num açougue, que parada óbvia Bidu!, diz Catinga. È porque ali que é o ponto extremo, não fode. A parte complicada vem agora. É o seguinte: Eu vou ter que chegar no alto do morro, por trás da favela, pra deixar rolar o tronco com os braços do homem borracha até o campinho, que é onde tem o movimento dos alemão. Nessa hora eu sei que lá vai tá vazio, mas eu vou ter que ir pelo mato e sair voado depois. Solucinho vai tá com a cabeça. Tu vai fazer o seguinte, sabe o prédio que tem ali do lado?, pra jogar a cabeça no meio lá, tu vai ter que subir no último andar, já falei com o porteiro, ele é nosso. Tu vai chegar e vai dizer que é da Rocinha, só isso entendeu?, mais nada. Ele vai te dar a chave do telhado, tu vai subir com o embrulho e vai jogar. Tu mira bem, tu é forte, vê se não faz merda. Depois você vai pro carro que vai tá na frente da caixa econômica federal, já com Túlio e Catinga. Cês vêm me pegar lá atrás do morro, na rua Jequitinhonha.
Depois do comunicado fez-se um silêncio tranqüilo na casa. Uma sólida cumplicidade emanava dos gestos e olhares. Bidu se levantava do seu banquinho, afastava da porta da geladeira Catinga que, absorto na contemplação de sua submetralhadora, dava dois passos para o lado automaticamente. Solucinho cortava um papel celofane, pra fazer uma pipa pro meu sobrinho, disse. Primeiro saiu Bidu, sem se despedir e sem ser notado, depois foi Catinga com sua arma nas costas. Solucinho ficou até enrolar o papel celofane a dois pedaços de madeira com barbante, e saiu admirando sua obra. Rojões explodindo interrompiam vez por outra o silêncio da noite calma. Risos ao longe ressoavam docemente, chegavam à sala de meu cadáver junto a uma brisa úmida e fria fazendo esvoaçar meu plástico preto.
Por baixo da mortalha, meu rosto perdeu um pouco de sua vontade de delicadeza. Meus olhos, agora baços, parecem os de um velho deprimido depois do banho. Minha pele esmaecida dialoga com as paredes encardidas em sopros mornos.
As primeiras luzes do dia vêm com Bidu e um homem munido de uma moto-serra. Bidu arranca o plástico preto que me envolve, me examina diligentemente e externa, enfim, um grito rouco e visceral essa porra né homem borracha não caralho puta que pariu. Puta que pariu. Chama o filha da puta do catinga aqui. Agora porra! Bidu tremia vermelho, se eu fosse importante ele estaria em maus lençóis, playboy atrai polícia porra, catinga falou que tinha certeza que aquela porra daquela van tava com homem borracha que tinha sido jogado pra fora da cidade de deus, depois que mataram ele lá comendo a filha de Dedé. Porra de Catinga nem olhou pra cara dessa porra.
Catinga chega com cara de sono e intimidado. Jura que tinha certeza que era ele, pede perdão. Ouve contrito o esporro de seu chefe, coçando o escroto vez por outra. Agora o que tu vai fazer é deixar essa porra bem longe daqui não quero corpo de playboy no meu morro, a gente não sabe nem que porra é essa, pode ter sido filho de alguma porra que se encheu de pó e morreu em rave pode ser qualquer porra. Pega o fusca de madrugada e desova essa porra em qualquer lugar da cidade, bem longe daqui, ouviu? Puta que te pariu catinga tu é foda. Bidu, foi Jessé que me falou pelo celular que tinha acabado de sair uma van do iml lá da cidade de Deus com homem borracha, porra, é muita coincidência, naquele dia com as ruas vazias ter tido duas no mesmo trecho. Foi mal, mas também eles são parecidos pra caralho vendo rápido daquele jeito no meio da rua. Porra, mesma altura, até a cara é um pouco parecida. Foi mal, Bidu, mas foi um azar do caralho.
Na madrugada seguinte, catinga me enrolou em outro plástico preto, me carregou com Solucinho até o fusca e partiu pela cidade, sozinho. Conseguiu, às três da manhã, me deixar na praça general Osório, tendo sido visto apenas por um casal de meninos de rua de doze anos que se chupavam sob uma amendoeira e que continuaram se chupando.
Fiquei descoberto em um canteiro eivado de bitucas de cigarro e grãos de milho jogados aos pombos por velhinhas. Meu pênis pendia, como sempre, para o lado esquerdo como podiam ver as mocinhas indo à praia em seus biquininhos módicos. Meus olhos já eram os de um vermelho pescado três dias antes e meu cheiro já competia com o dos mendigos inchados que habitam a praça. Rebolando jovialmente uma cocker spaniel fêmea não se intimidou e me beijou de língua, ao que correspondi prontamente.
Alvaro Fagundes.
Balanço ao ritmo do mar, minha pele embaixo d´água está esbranquiçada. Meus pelos serpenteiam quase imperceptivelmente e meu cabelo preto, longo e denso se espalha. Meus olhos estão esbugalhados e injetados de sangue. Aos poucos sou levado pela maré em direção à praia de Guaratiba, onde um vento forte levanta areia e derruba cadeiras de plástico em volta de uma mesa. Começa uma chuva fina e eu chego à arrebentação. Levo um caldo, reapareço de cabeça para cima e sou expulso por uma última onda. Meus membros estão roxos e minha boca aberta. Em volta de mim, tatuís correm sofregamente até cavarem seus buracos e desaparecerem. A chuva pára e as nuvens pretas se esticam, dando lugar a um extenso lençol algodoado.
Durante dois dias chuvosos, sou marinado e queimado pelo mormaço. A praia está deserta, é julho de dois mil e sete e a cidade está muito fria. É o pior inverno nos últimos doze anos. Um grupo de pessoas pobres se aproxima e me avista, eu estou com a boca escancarada com dentes cariados e os olhos comidos pelas beiradas. Elas me examinam com uma curiosidade de latino-americano diante de um acidente de trânsito. Uma mulher feia, baixinha e gorda se persigna enquanto os outros se contentam em manter uma pequena distância em sinal de respeito. O efeito mais terrível do meu naufrágio fica aparente nas comissuras dos meus olhos: há sal acumulado em toda a beira, e, nas extremidades, o sal forma com a areia e minha secreção ressecada uma pasta opaca que escorreu até minhas bochechas barbadas.
Os três homens e a mulher se perguntam o que devem fazer. O mais fácil seria ignorar que me viram já que ninguém os sabia ali. A mulher sugere que me cortem o cabelo para vender, ela acha que minhas madeixas, que chegavam à cintura, poderiam render ao menos 300 reais. Todos concordaram. Tinham uma tesoura entre seus pertences recuperados no quiosque da praia e a mulher começou a cortar, enquanto os homens faziam a vigilância. Cortava tão rente que feriu meu couro cabeludo. Três pequenos filetes de sangue escorriam por minha careca depois de completo o serviço da assaltante. Partem rápido, com meu cabelo num saco do Prezunic.
Não fosse o frio e eu já estaria com um cheiro muito mais forte. Meu sangue estancado nas veias me deixa inchado e branco, mas não pareço morto. Não estou perplexo, não estou apavorado, tampouco estou sereno. Meu corpo parece ansiar por uma sutileza. Acho-me bonito careca, quando vivo sempre tive curiosidade de me ver com a cabeça raspada, mas nunca tive coragem de passar a máquina, agora estou muito bonito, como uma figura de Schiele, mas ainda não tão magro e um pouco menos intenso. Minhas pernas estão separadas e estendidas, meu braço esquerdo está sobre minha barriga e o direito ao longo do corpo. Minha cabeça cai um pouco abaixo do nível do tronco por causa de um desnível na areia, deixando meu pescoço ao ar.
Na tarde do meu terceiro dia, aparecem homens com uma maca. Um preto gordo e alto me pega pelos braços e um cearense pelas pernas. Eles estão entediados e se entreolham com um desdém de parceiros na mediocridade. Levado, minha cabeça pende para a esquerda e meus olhos esgazeados apontam para as ondas espumantes, em seguida os trabalhadores manobram e o que tenho frente a meus olhos então é uma encosta verdejante. Mais alguns passos e entro na Kombi, a porta bate num estrépito. O negão arranca, o cearense arrota, e sigo rumo ao IML.
O carro dá muitos solavancos e eu fui muito mal acomodado pelos dois, dou pulos na minha maca, minhas pernas e meus braços pululam a esmo. Passamos por um quebra-molas e o motorista não freia. Eu sou jogado para fora da minha maca, caio de bruços, quebrando um dente e esmagando meu nariz. Depois do susto, o nordestino externa um tsc de desprezo respondido por um não fode. Já estamos na Avenida das Américas.
Parece ser Domingo, o trânsito flui muito bem. Nosso carro é fechado de repente por um fusca. Minha porta é aberta por um homem com um fuzil que me levanta sem olhar para o meu rosto e me leva até o fusca. O negão e o cearense estão rendidos por dois outro homens armados com sub-metralhadoras Uzi .33. Eu sou jogado no banco de trás do carro minúsculo, os dois outros seqüestradores voltam correndo e se acomodam nos bancos da frente. Arrancamos violentamente, cantando pneu. Eles estão muito excitados, dizem que vão me esquartejar seu filho de uma puta. O plano é colocar pedaços de mim em quatro cantos de uma favela controlada pela A.D.A, eles estão na dúvida entre a vila cruzeiro e a favela dos macacos.
Me levam pra Rocinha. No sopé do morro, me levam a um beco e sou colocado num saco preto. Em seguida, Catinga me pega pelos braços, Bidu pela perna direita e Solucinho pela perna esquerda. Eles me levam até um barraco no alto do morro, e me colocam no chão. Passam o dia se comunicando com comparsas pelos telefones celulares. O plano é pra que tudo aconteça sem um tiro sequer, minhas partes vão ser colocadas discretamente em quatro pontos da favela vila cruzeiro, decidiram. Em horário de muita movimentação, Bidu, Solucinho, Catinga e talvez Guarani, não esse guarani fala pra caralho, catinga, bora chamar o Túlio. Tá. vão se misturar ao povo da favela. Minhas pernas vão ser colocadas nas duas pontas da base do morro, meu tronco vai pro alto e minha cabeça vai ser jogada em direção ao centro da favela, onde fica o entroncamento das duas ruas principais da comunidade.
Bidu está na cozinha da casa comendo um sanduíche de presunto com maionese, tem na sua mão grossa um canivete que faz rodopiar com um gesto ágil. Ele está sentado num banquinho pequeno; com o pé direito descalço prende a parte de trás do chinelo do pé esquerdo no ar para fazê-lo estalar, soltando-o na casca grossa da sola imunda. Lança olhares agitados em direção à porta da cozinha e em seguida volta o olhar para dentro, assumindo uma pose inquietante, transmitindo a certeza de que pode voltar à superfície com uma determinação inexorável. Cola algumas migalhas de pão francês ao seu dedo indicador e as leva à boca, em seguida joga seu prato na pia, sai da cozinha, e, com uma resolução firme e inquestionável na voz, convoca Catinga e Solucinho, que estão ensinando dois garotos a soltar pipa, para uma reunião.
Solucinho se senta ao meu lado, evitando tocar no plástico preto que me embrulha, por algum prurido nobre. Catinga fica em pé, recostado à parede do lado de fora da cozinha, rachada por uma infiltração. No meio da sala, Bidu dá as ordens: então Túlio leva uma perna embrulhada em jornal e deixa na entrada de um açougue que tem no começo da ladeira do canto direito. Amanhã eu falo pra ele. A outra perna Catinga vai deixar na casa de uma coroa no começo da ladeira, na outra ponta. A janela fica aberta de manhã então é só chegar sem ninguém ver que tá tranqüilo. –Porra, num açougue, que parada óbvia Bidu!, diz Catinga. È porque ali que é o ponto extremo, não fode. A parte complicada vem agora. É o seguinte: Eu vou ter que chegar no alto do morro, por trás da favela, pra deixar rolar o tronco com os braços do homem borracha até o campinho, que é onde tem o movimento dos alemão. Nessa hora eu sei que lá vai tá vazio, mas eu vou ter que ir pelo mato e sair voado depois. Solucinho vai tá com a cabeça. Tu vai fazer o seguinte, sabe o prédio que tem ali do lado?, pra jogar a cabeça no meio lá, tu vai ter que subir no último andar, já falei com o porteiro, ele é nosso. Tu vai chegar e vai dizer que é da Rocinha, só isso entendeu?, mais nada. Ele vai te dar a chave do telhado, tu vai subir com o embrulho e vai jogar. Tu mira bem, tu é forte, vê se não faz merda. Depois você vai pro carro que vai tá na frente da caixa econômica federal, já com Túlio e Catinga. Cês vêm me pegar lá atrás do morro, na rua Jequitinhonha.
Depois do comunicado fez-se um silêncio tranqüilo na casa. Uma sólida cumplicidade emanava dos gestos e olhares. Bidu se levantava do seu banquinho, afastava da porta da geladeira Catinga que, absorto na contemplação de sua submetralhadora, dava dois passos para o lado automaticamente. Solucinho cortava um papel celofane, pra fazer uma pipa pro meu sobrinho, disse. Primeiro saiu Bidu, sem se despedir e sem ser notado, depois foi Catinga com sua arma nas costas. Solucinho ficou até enrolar o papel celofane a dois pedaços de madeira com barbante, e saiu admirando sua obra. Rojões explodindo interrompiam vez por outra o silêncio da noite calma. Risos ao longe ressoavam docemente, chegavam à sala de meu cadáver junto a uma brisa úmida e fria fazendo esvoaçar meu plástico preto.
Por baixo da mortalha, meu rosto perdeu um pouco de sua vontade de delicadeza. Meus olhos, agora baços, parecem os de um velho deprimido depois do banho. Minha pele esmaecida dialoga com as paredes encardidas em sopros mornos.
As primeiras luzes do dia vêm com Bidu e um homem munido de uma moto-serra. Bidu arranca o plástico preto que me envolve, me examina diligentemente e externa, enfim, um grito rouco e visceral essa porra né homem borracha não caralho puta que pariu. Puta que pariu. Chama o filha da puta do catinga aqui. Agora porra! Bidu tremia vermelho, se eu fosse importante ele estaria em maus lençóis, playboy atrai polícia porra, catinga falou que tinha certeza que aquela porra daquela van tava com homem borracha que tinha sido jogado pra fora da cidade de deus, depois que mataram ele lá comendo a filha de Dedé. Porra de Catinga nem olhou pra cara dessa porra.
Catinga chega com cara de sono e intimidado. Jura que tinha certeza que era ele, pede perdão. Ouve contrito o esporro de seu chefe, coçando o escroto vez por outra. Agora o que tu vai fazer é deixar essa porra bem longe daqui não quero corpo de playboy no meu morro, a gente não sabe nem que porra é essa, pode ter sido filho de alguma porra que se encheu de pó e morreu em rave pode ser qualquer porra. Pega o fusca de madrugada e desova essa porra em qualquer lugar da cidade, bem longe daqui, ouviu? Puta que te pariu catinga tu é foda. Bidu, foi Jessé que me falou pelo celular que tinha acabado de sair uma van do iml lá da cidade de Deus com homem borracha, porra, é muita coincidência, naquele dia com as ruas vazias ter tido duas no mesmo trecho. Foi mal, mas também eles são parecidos pra caralho vendo rápido daquele jeito no meio da rua. Porra, mesma altura, até a cara é um pouco parecida. Foi mal, Bidu, mas foi um azar do caralho.
Na madrugada seguinte, catinga me enrolou em outro plástico preto, me carregou com Solucinho até o fusca e partiu pela cidade, sozinho. Conseguiu, às três da manhã, me deixar na praça general Osório, tendo sido visto apenas por um casal de meninos de rua de doze anos que se chupavam sob uma amendoeira e que continuaram se chupando.
Fiquei descoberto em um canteiro eivado de bitucas de cigarro e grãos de milho jogados aos pombos por velhinhas. Meu pênis pendia, como sempre, para o lado esquerdo como podiam ver as mocinhas indo à praia em seus biquininhos módicos. Meus olhos já eram os de um vermelho pescado três dias antes e meu cheiro já competia com o dos mendigos inchados que habitam a praça. Rebolando jovialmente uma cocker spaniel fêmea não se intimidou e me beijou de língua, ao que correspondi prontamente.
Alvaro Fagundes.
6 Comments:
At 6:47 PM,
leonardo marona said…
Primeiro, dizer que a língua está trabalhada de maneira impecável. O ritmo das vírgulas, a rapidez de fluência que os diálogos intercalados dentro dos parágrafos assinala. Aliás, adorei esse artifício dos diálogos grosseiros entre a descrição sofisticada. Adorei muito esse trecho, meu preferido:
“Por baixo da mortalha, meu rosto perdeu um pouco de sua vontade de delicadeza. Meus olhos, agora baços, parecem os de um velho deprimido depois do banho. Minha pele esmaecida dialoga com as paredes encardidas em sopros mornos.”
Acho que esse texto tem uma velocidade interessante de leitura, que contrasta com a lentidão do morto, ausente-atuante. Vc mistura bem as linguagens e o que acontece é uma série de flexões de sobrancelhas do leitor, intercaladas com suspiros de prazer, quase um alivio da densidade marinada do texto, por exemplo, ao se ler “parceiros na mediocridade”, “saco do Prezunic” ou “bonito como uma figura de Schiele”. Isso é ótimo porque dá movimentação ao texto, e faz com que ele se equilibre entre a intensidade indiferente da violência urbana e a descrição desinteressada de um morto sofisticado.
A única coisa que não gostei foi a introdução dos personagens traficantes. Eles aparecem do nada e na hora eu me confundi e achei que tivesse perido alguma coisa. Mas depois me acostumei com eles e segui a leitura, até o cocker spaniel, que é um grande final, ironizando de alguma forma nós seres humanos.
Ainda que bem que voltou a escrever, meu irmão. Isso é uma alegria, pela leitura, e um estímulo, porque, mesmo sendo de morte, é um texto cheio de vida, como se o morto fosse mais perceptivo que os vivos, “parceiros na mediocridade”.
At 7:47 PM,
Anônimo said…
Oi, Leo. muito obrigado por ler e por falar. vc me dá o estímulo que eu não tenho tido a generosidade de te dar, embora você saiba que eu penso que vc jamais deve parar de escrever, ainda que isso seja a nunca coisa a respeito que eu tenho dito recentemente. O trecho que vc destacou acho também que é o melhor. mas o texto é irregular, acho que tem uma ou duas partes, como a que vc detectou, que deveriam ser mais trabalhadas. achei muito legal o que vc disse sobre o estilo indireto livre, o propósito pra mim é justamente o efeito que vc sentiu, assim como o que eu quis fazer com o morto, que é também um observador. enfim, gostei muito da sua leitura. grande abraço.
At 11:22 AM,
Anônimo said…
Bem, primeiro é preciso dizer que eu tb fico mto contente de que tenha voltado a escrever. O texto, de fato, tá mto bom. A idéia é ótima, "um dia na vida de um morto"; melhor ainda é o que vc faz dela. Quero dizer: o contraste entre o absurdo da experiência e a inevitável atitude resignada e contemplativa do cadáver. Posso mesmo dizer que eu "simpatizo" com o seu cadáver. Vejo bastante do Alvaro que eu conheço ali! Estilísticamente falando, o texto é tb mto original. O ritmo é ótimo e tem um senso de humor mto sofisticado. Gosto sobretudo desta mistura de léxicos, popular e erudito, que vc sempre faz (e faz mto bem!) Talvez seja preciosismo meu, mas acho que a sintaxe poderia ser um pouco melhor resolvida. Como disse o Leo, o meio do texto fica, de fato, um pouco confuso. Acho que a mistura dos discursos que vc faz o tempo todo pede talvez mais cuidado com a pontuação.
abçs.
At 6:52 PM,
natércia pontes said…
olá, álvaro. gosto muito de vc e do texto - que está uma coisa russa com pitadas de fernando meirelles, sem ofensas.
um beijo,
At 9:41 PM,
Anônimo said…
Oi joão, a pontuação, eu acho, que se fosse mais rigorosa e marcasse mais os discursos a fluidez se perderia. a indeterminação que faz com se tenha que reler pra ver quem tá falando é uma coisa que me interessa. no mais, obrigado pela sua leitura sempre sagaz.
Natércia, tmbém gosto muito de vc e dos seus textos. mas fernando meirelles?! beijo grande
At 1:14 PM,
Anônimo said…
oi alvaro!!!!!!!!!, acabei de ver que tem um texto teu.a parte do texto que eu mais gostei foi "alvaro fagundes", ..... to brincando sério. olha só. o morto somos nós, e os assassinos. a sua morte suave me colocou como leitora na passividade, uma latino americana vendo mais uma morte na tv, em qualquer lugar.vim aqui pro coro para implorar que você não pare de escrever. e para celebrar esse teu raio fugaz. beijos
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