A rotina tem seus encantos

quarta-feira, julho 26, 2006

As badaladas não coincidem
com os ponteiros: cava-se,
cava-se, cava-se, entretanto
sempre falta.


João Duarte

domingo, julho 23, 2006

Os dentes de leite da felicidade

Me sentia escarnecido pelo sol, com os cílios indiscretos das folhas cochichando maldosamente por debaixo das sombras das árvores, às minhas costas. Foi quando me aconteceu a coisa mais estranha: cruzei no caminho com a felicidade. Vou explicar melhor.

O sol formava sombras rarefeitas que pipocavam sobre a minha cabeça, e em volta estava tudo completamente granulado: a areia congestionada de um lado, a redoma de fumaça do outro. Uma animosidade suspeita cobria como poeira a mobília do mundo. E a felicidade me apareceu, adaptada à silhueta de um menino magro inchado de vermes.

Este menino acinzentado, magreza funérea de sorriso nauseado, se aproximou de mim e disse:

- Seu moço, pega pra mim a rabiola, que ela ficou agarrada no galho.

E me estendeu uma linha de pipa com uma pedra amarrada na ponta. Eu olhei para o garoto um pouco desnorteado. Vinha tentando enganar a mim mesmo com complexidades amenas para não encarar a simplicidade avassaladora com que aquilo que nos define também nos atropela: no meu caso, uma sensação de conspiração e fracasso, que gera apavoramento e confusão mental.

Comecei a girar a linha presa à pedra como se fosse um pêndulo no ar. Fiz isso por um minuto, para testar as possibilidades, então segurei a linha. E olhei outra vez para o garoto, que parecia uma estátua egípcia mal conservada:

- A linha é muito curta – eu disse. – Não vai alcançar a rabiola.

Seus olhos eram duas bolotas assustadas que se mexiam sem conexão uma com a outra, o tempo todo, como dois pequenos demônios num processo de exorcismo. A boca aberta também, os dedos lambuzados de saliva dentro dela.

Lancei uma, duas vezes a linha, em vão. O garoto me olhando quieto. Na terceira tentativa, lancei com muita força, porque já estava ficando cheio daquilo tudo: daquela criança que parecia saber dos meus segredos, me olhando fixamente sem eu saber o que lhe passava pela cabeça. E a linha acabou presa num galho. Dei um puxão e senti que ela se esgarçou até quase arrebentar. Olhei para o garoto mais uma vez. Minha testa escorria tensão.

Tinha uma fisionomia intrigante e ao mesmo tempo assustadora. Pela primeira vez reparei na longa trilha de cal que lhe cortava a barriga bichada em dois pedaços esquecidos de vida. Me olhava com olhar de ancião. Um olhar taxativo de censura e piedade. Muitas vezes recebi este olhar, sem saber como defini-lo ou rebatê-lo. Outras tantas, em sonho, tinha visto aqueles mesmos olhos presos ao rosto sem dentes de um velho desconhecido. Era a cobrança pela minha juventude desperdiçada. Por toda a negligência e pelos vícios que me desviavam do curso natural da vida. Tudo isso agora estava claro. Aglutinado naqueles olhos, dentro daquele corpo mirrado manchado de cal virgem.

- Moço, cuidado quando puxar a linha pra ela não rebentá.

E ainda por cima aqueles olhos falavam!

Com as mãos trêmulas, forjei um sorriso. Então tomei todo o cuidado, vendo meus pingos mancharem a terra batida, e consegui desvencilhar a linha do galho. E outra vez – desta vez pensando como teria sido ser marinheiro no porto de Antuérpia – fiz o pêndulo e lancei a linha na direção do galho onde a rabiola estava presa. A pedra foi se aconchegando a cada volta ao coração da rabiola, até o paralisar totalmente. Por um momento me pareceram dois amantes trágicos.

Puxei a linha com delicadeza para dar um grande desfecho àquela pequena cena. Olhei para o garoto quando lhe entreguei a linha enroscada na rabiola. E pude ver que, além de tudo, a felicidade estava trocando seus dentes de leite. Isso me deu alguma esperança.

Leo Marona

quinta-feira, julho 13, 2006

Testemunho

Eu vejo minha pequena sobrinha assistindo TV e penso que o
azul que ela vê deve ser muito mais brilhante.
Eu sei de corredores pensamentos emoções que são tão lindos
E clamam por nascer viver morrer
Eu tento abrir o livro ler pedaço desse livro mas é chato mas é grande e caga regra e tece o mundo o
que eu não
quero menos quero é um phd que teça o mundo.
Eu olho por mim e para os outros procurando o grande salto
o grande céu que me instigava. Eles ali buscam a âncora, mas é diferente, eles sabem o que fazem.
Eu penso que um dia
a coisa muda
Ou eu encontro o ponto máximo a carne dura
E o descanso finalmente
Mas não existe não está porque a saída é lateral
É lateral é lateral. A saída
vida rica ou paz de espírito
É lateral – a linha é dura.
Eu sigo o meu instinto eu cresço com o mundo e o mundo fede.
Presto mais atenção nos jornais mas o jornais não dizem nunca
O que preciso precisamos ouvir.
Eu sei de um pôr-do-sol de um dia aí com gente boa de quando em nunca
ao qual eu sempre falto.
Eu penso e sinto e converso e adivinho o horizonte tão sozinho e deslizo como
um óleo sem sentido entre os discursos tão vazios meu instante tão adulto
tão maduro lindo puro,
único a pensar seriamente em fugir.


Sérgio Lohmann Couri