Porque “Tropa de Elite” é um bom filme.
Passado um pouco o furor que precedeu e cercou a exibição de “Tropa de Elite”, acredito que ainda se faz necessário um esforço de esclarecimento a respeito do assunto do filme; sobretudo levando-se em consideração o fato de que, por tudo o que li e ouvi até agora, seu conteúdo foi largamente mal avaliado. O equívoco na interpretação do argumento deve-se em grande parte às próprias características de seu meio, uma obra de ficção. A escolha de se apresentar um argumento medianamente complexo ao modo de um filme tem uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem reside no alcance e penetração que este tipo de discurso possui, mas o seu reverso é a falta de clareza conceitual, característica intrínseca à ficcionalidade. Seja como for, “Tropa de Elite” produz uma intervenção contundente no debate público a respeito da segurança pública, e seus termos devem ser corretamente aprendidos, ainda que seja para se lhes opor.
Em primeiro lugar, não se trata de um elogio ao Bope, nem me parece ser a intenção dos autores heroicizar o seu narrador, o Capitão Nascimento. Se o argumento foi entendido dessa maneira, isso se deve a uma falha ou de virtude intelectual ou moral do público, sugerindo a desoladora constatação de que a situação descrita pelo filme tende a se perpetuar.
Afinal, de que trata então o filme? O enredo vai se cosendo como uma narrativa clássica de “romance de formação”, em que o personagem, interagindo em contextos diversos, vai aos poucos superando suas contradições até realizar seu “destino”. Terrível destino, devo dizer; porque a formação em questão é a de um “monstro”. Refiro-me ao aspirante a oficial da polícia e também aluno do curso de Direito na Universidade Católica do Rio, André Matias, interpretado por André Ramiro. André, pobre e negro, vê-se às voltas com a difícil tarefa de conciliar sua inserção numa universidade freqüentada por membros da elite – cujo ethos vai de encontro alguns de seus valores, sobretudo no que diz respeito ao consumo de drogas e às opiniões prevalecentes a respeito da instituição policial – e sua própria carreira como aspirante a oficial da mesma. Ao mesmo tempo, André tem suas aspirações virtuosas confrontadas com as seculares práticas de corrupção que cercam sua vivência como policial. É justamente em função deste último embate que se produz o evento que dá início ao filme, e coloca André diante de seu Mefistófeles, o complexo Capitão Nascimento, comandante de uma unidade de elite da polícia carioca, originalmente criada para atuar em situações excepcionais. Ao mesmo tempo narrador do filme, Nascimento não é simplesmente um “agente do mal” - ainda que seja ele o responsável direto pelo desvio do herói (André) -, mas um experiente policial, dilacerado entre as pressões privadas, familiares, e seu dever como policial. Sempre à beira de uma crise nervosa, Nascimento, obrigado a trabalhar numa situação limite, acaba aderindo a práticas de violência e tortura que transbordam das suas prerrogativas. Paradoxalmente, Nascimento é absolutamente lúcido a respeito de seu contexto, é absolutamente cônscio dos limites da ação individual dentro de um arranjo socioinstitucional distorcido, incapaz de prover os incentivos necessários ao cumprimento da tarefa da segurança pública de maneira virtuosa, ou mesmo eficaz. Nascimento encarna então a figura dramática do “cético-realista”, aquele que sabedor dos limites, conhecedor da situação, age para atingir um resultado, a contrapelo de sua consciência, sacrificando-a. É esta a lição que dele receberá André, seu discípulo e substituto.
Afasto-me da trama e passo ao que realmente importa neste filme, o argumento sociológico que subjaz à mesma. É disto que se trata: uma intervenção sociologicamente bem informada num debate político. Convém lembrar que o filme é uma adaptação de um livro escrito por um sociólogo e dois membros do Bope. O drama das personagens e a narrativa do Capitão Nascimento desvelam um panorama da situação da segurança pública da cidade do Rio de Janeiro, com extrapolações possíveis àquela de todo o país. O próprio Nascimento e a sua atuação no Bope evidenciam o sintoma mais terrível do estado de calamidade que decorre da corrupção das instituições responsáveis pela segurança do Estado.
O argumento é o seguinte: a falência da instituição policial, que envolve uma combinação de policiais mal pagos e mal preparados, muitos dos quais envolvidos em ações criminosas, desde pequenas contravenções, como a venda das peças de suas viaturas e cobrança de propinas, até gravíssimas, como a venda de armamento para traficantes e participação na venda de drogas, em conjunto com muitas outras causas (das quais não trata o filme), produz uma situação em que uma unidade especial, originalmente destinada para atuar apenas em casos extraordinários (“operações especiais”, informa a sigla), treinada para guerra, para matar, torna-se o único recurso de que dispõe o Estado para lidar com o problema da segurança. O resultado é, obviamente, terrível. É como usar canhões para combater nuvens de gafanhotos, mata-se alguns, mas se destrói tudo em volta. A metáfora é ainda insuficiente, dado que o problema em questão envolve pessoas, e não insetos. De qualquer modo, acho que ajuda a esclarecer o ponto. A própria arma, quando usada inapropriadamente, como é o caso da atuação do Bope fora de seu contexto, acaba por corromper-se. Policiais não devem matar pessoas, podem fazê-lo, mas apenas em casos extremos; e policiais não devem torturar pessoas, jamais. Ponha-se uma unidade de guerra atuando repetida e cotidianamente em situações para as quais não foi feita, e temos distorções, tais como a conduta do Capitão Nascimento. Um personagem que, em si não destituído de virtudes, tais como coragem, lucidez e honestidade, tem seu caráter corrompido, porque, obrigado a situações limites, acaba fazendo escolhas erradas. Reside aí a complexidade deste personagem, testemunha da fragilidade humana. Nascimento demonstra o fato de que qualquer aspiração a agir corretamente é facilmente aniquilada dentro de contextos que oneram o correto e premiam o errado. O Capitão Nascimento faz a sua escolha pragmática; atuando no meio deste sistema profundamente corrompido, não o renega, e ainda que sabedor das conseqüências de suas ações aí, cumpre seu dever. Em determinado momento do filme ele avisa a seus superiores que garantir a segurança da visita do Papa a determinado local exigirá incursões diárias a zonas urbanas deflagradas densamente habitadas e, portanto, “vai dar merda, vai morrer gente”; mas ele vai, faz o que lhe mandam, com os meios e resultados que ele e nós conhecemos.
O ponto do filme é justamente a denúncia desta situação. Através da exposição da brutal irracionalidade da política de confronto direto, única alternativa que a atual situação da segurança pública permite, busca nos sensibilizar para a necessidade imperativa de modificá-la. Este terrível sistema descrito pelo filme - e cuja pregnância empírica é inegável - na melhor das hipóteses produzirá mais e mais confronto direto, mais e mais capitães Nascimento. Não se oferecem soluções específicas a esta situação, porque o objetivo é denunciá-la – afinal, trata-se de uma obra de ficção - de uma maneira bem informada e contundente, mas obviamente sugere-se sua modificação. Esta modificação exige sabedoria e prudência políticas, capazes de articular medidas que envolvam, entre muitas outras, uma reforma da corporação policial.
Passo agora à questão da recepção do filme. Como uma análise sistemática da mesma não seria possível, limitar-me-ei, aqui, a contra-arrestar dois argumentos que tem sido recorrentes entre a crítica. O primeiro se refere a uma acusação de fascismo feita ao filme e seu autor. Sem levar em consideração o uso um tanto ingênuo de um conceito complexo como “fascismo”, parto da suposição de que tal acusação se baseia numa incompreensão do argumento, incorrendo, portanto, no mesmo erro daqueles que elogiam o filme pelas mesmas razões (o que me parece ainda mais grave). O erro aqui consiste em ler o filme como um elogio à política de confronto e às práticas violentas do Bope. Mas trata-se justamente do contrário! Mais uma vez: o filme denuncia a irracionalidade de um sistema corrupto que torna a política de confronto direto, e a violência descontrolada que dela decorre, o único recurso. Através da exposição das suas conseqüências brutais, o filme ataca o contexto, sugerindo sua modificação. Aqueles que acusam o filme de fascismo foram, portanto, incapazes de aprender corretamente o seu argumento, e o criticam pelo motivo errado. Agora, a respeito daqueles que, incorrendo no mesmo erro, ou seja, que leram o filme como um elogio à violência estúpida, e, ainda assim, aprovaram o filme, não há o que dizer. Não há o que dizer porque estas pessoas se situam fora do limites persuasivos dentro quais a argumentação lógica, minha e do filme, pode ser eficaz, na medida em que não compartilham dos valores que a norteiam. A respeito de tais pessoas pode-se apenas dizer uma coisa: vivem a situação que merecem.
O segundo tipo de crítica recorrente ao filme o acusa de apontar o consumo de drogas pela elite e pela classe média como o responsável pela violência. Sem considerar o tratamento um tanto caricato – ainda que não inverossímil - que se dá às personagens ligadas ao “núcleo PUC”, devo reiterar que o ponto central do argumento é a situação calamitosa da segurança pública, esta sim a grande vilã. No entanto, é verdade também que, sem culpabilizar diretamente a elite e a classe média pela violência, o filme incita as mesmas a uma reflexão sobre suas práticas. O que é muito diferente. O argumento central não exclui, por exemplo, a possibilidade de que a legalização das drogas entre no mix possível de políticas públicas necessárias para a modificação da situação. No entanto, diante da atual situação, ele nos força a pensar seriamente no que fazemos. Dentro do quadro atual, quer nos decidamos ou não pelo uso de drogas ilícitas, é impossível sermos ingênuos a respeito desse uso.
Um estímulo à reflexão sobre um determinado contexto e sobre as conseqüências de nossas práticas dentro deste contexto, nisso reside o valor de “Tropa de Elite”. Seu propósito é profundamente político e moral, sugerindo uma transformação radical da situação atual da segurança pública. Ainda que seja uma obra de ficção, sua temática e proximidade de uma certa realidade cotidiana absolutamente terrível não nos deixa espaço nenhum para o distanciamento, e, portanto, não permite o “prazer desinteressado”, característico da experiência estética. Todos os elementos “estéticos” convergem no filme, como forças retóricas, para o reforço do argumento - o que torna a trama e as personagens, às vezes, um tanto esquemáticas. Mas a bem feita construção de um “sistema” e a exposição de suas conseqüências mais terríveis, reforçada pela contundência bruta das cenas de violência explícita, tornam este filme importante. Por isso mesmo, optei neste texto por não analisá-lo esteticamente, mas sim discuti-lo como uma intervenção no debate público, explorando a qualidade e relevância de seu argumento. Apenas neste sentido, posso dizer que “Tropa de Elite” é um bom filme.
João Duarte.
Passado um pouco o furor que precedeu e cercou a exibição de “Tropa de Elite”, acredito que ainda se faz necessário um esforço de esclarecimento a respeito do assunto do filme; sobretudo levando-se em consideração o fato de que, por tudo o que li e ouvi até agora, seu conteúdo foi largamente mal avaliado. O equívoco na interpretação do argumento deve-se em grande parte às próprias características de seu meio, uma obra de ficção. A escolha de se apresentar um argumento medianamente complexo ao modo de um filme tem uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem reside no alcance e penetração que este tipo de discurso possui, mas o seu reverso é a falta de clareza conceitual, característica intrínseca à ficcionalidade. Seja como for, “Tropa de Elite” produz uma intervenção contundente no debate público a respeito da segurança pública, e seus termos devem ser corretamente aprendidos, ainda que seja para se lhes opor.
Em primeiro lugar, não se trata de um elogio ao Bope, nem me parece ser a intenção dos autores heroicizar o seu narrador, o Capitão Nascimento. Se o argumento foi entendido dessa maneira, isso se deve a uma falha ou de virtude intelectual ou moral do público, sugerindo a desoladora constatação de que a situação descrita pelo filme tende a se perpetuar.
Afinal, de que trata então o filme? O enredo vai se cosendo como uma narrativa clássica de “romance de formação”, em que o personagem, interagindo em contextos diversos, vai aos poucos superando suas contradições até realizar seu “destino”. Terrível destino, devo dizer; porque a formação em questão é a de um “monstro”. Refiro-me ao aspirante a oficial da polícia e também aluno do curso de Direito na Universidade Católica do Rio, André Matias, interpretado por André Ramiro. André, pobre e negro, vê-se às voltas com a difícil tarefa de conciliar sua inserção numa universidade freqüentada por membros da elite – cujo ethos vai de encontro alguns de seus valores, sobretudo no que diz respeito ao consumo de drogas e às opiniões prevalecentes a respeito da instituição policial – e sua própria carreira como aspirante a oficial da mesma. Ao mesmo tempo, André tem suas aspirações virtuosas confrontadas com as seculares práticas de corrupção que cercam sua vivência como policial. É justamente em função deste último embate que se produz o evento que dá início ao filme, e coloca André diante de seu Mefistófeles, o complexo Capitão Nascimento, comandante de uma unidade de elite da polícia carioca, originalmente criada para atuar em situações excepcionais. Ao mesmo tempo narrador do filme, Nascimento não é simplesmente um “agente do mal” - ainda que seja ele o responsável direto pelo desvio do herói (André) -, mas um experiente policial, dilacerado entre as pressões privadas, familiares, e seu dever como policial. Sempre à beira de uma crise nervosa, Nascimento, obrigado a trabalhar numa situação limite, acaba aderindo a práticas de violência e tortura que transbordam das suas prerrogativas. Paradoxalmente, Nascimento é absolutamente lúcido a respeito de seu contexto, é absolutamente cônscio dos limites da ação individual dentro de um arranjo socioinstitucional distorcido, incapaz de prover os incentivos necessários ao cumprimento da tarefa da segurança pública de maneira virtuosa, ou mesmo eficaz. Nascimento encarna então a figura dramática do “cético-realista”, aquele que sabedor dos limites, conhecedor da situação, age para atingir um resultado, a contrapelo de sua consciência, sacrificando-a. É esta a lição que dele receberá André, seu discípulo e substituto.
Afasto-me da trama e passo ao que realmente importa neste filme, o argumento sociológico que subjaz à mesma. É disto que se trata: uma intervenção sociologicamente bem informada num debate político. Convém lembrar que o filme é uma adaptação de um livro escrito por um sociólogo e dois membros do Bope. O drama das personagens e a narrativa do Capitão Nascimento desvelam um panorama da situação da segurança pública da cidade do Rio de Janeiro, com extrapolações possíveis àquela de todo o país. O próprio Nascimento e a sua atuação no Bope evidenciam o sintoma mais terrível do estado de calamidade que decorre da corrupção das instituições responsáveis pela segurança do Estado.
O argumento é o seguinte: a falência da instituição policial, que envolve uma combinação de policiais mal pagos e mal preparados, muitos dos quais envolvidos em ações criminosas, desde pequenas contravenções, como a venda das peças de suas viaturas e cobrança de propinas, até gravíssimas, como a venda de armamento para traficantes e participação na venda de drogas, em conjunto com muitas outras causas (das quais não trata o filme), produz uma situação em que uma unidade especial, originalmente destinada para atuar apenas em casos extraordinários (“operações especiais”, informa a sigla), treinada para guerra, para matar, torna-se o único recurso de que dispõe o Estado para lidar com o problema da segurança. O resultado é, obviamente, terrível. É como usar canhões para combater nuvens de gafanhotos, mata-se alguns, mas se destrói tudo em volta. A metáfora é ainda insuficiente, dado que o problema em questão envolve pessoas, e não insetos. De qualquer modo, acho que ajuda a esclarecer o ponto. A própria arma, quando usada inapropriadamente, como é o caso da atuação do Bope fora de seu contexto, acaba por corromper-se. Policiais não devem matar pessoas, podem fazê-lo, mas apenas em casos extremos; e policiais não devem torturar pessoas, jamais. Ponha-se uma unidade de guerra atuando repetida e cotidianamente em situações para as quais não foi feita, e temos distorções, tais como a conduta do Capitão Nascimento. Um personagem que, em si não destituído de virtudes, tais como coragem, lucidez e honestidade, tem seu caráter corrompido, porque, obrigado a situações limites, acaba fazendo escolhas erradas. Reside aí a complexidade deste personagem, testemunha da fragilidade humana. Nascimento demonstra o fato de que qualquer aspiração a agir corretamente é facilmente aniquilada dentro de contextos que oneram o correto e premiam o errado. O Capitão Nascimento faz a sua escolha pragmática; atuando no meio deste sistema profundamente corrompido, não o renega, e ainda que sabedor das conseqüências de suas ações aí, cumpre seu dever. Em determinado momento do filme ele avisa a seus superiores que garantir a segurança da visita do Papa a determinado local exigirá incursões diárias a zonas urbanas deflagradas densamente habitadas e, portanto, “vai dar merda, vai morrer gente”; mas ele vai, faz o que lhe mandam, com os meios e resultados que ele e nós conhecemos.
O ponto do filme é justamente a denúncia desta situação. Através da exposição da brutal irracionalidade da política de confronto direto, única alternativa que a atual situação da segurança pública permite, busca nos sensibilizar para a necessidade imperativa de modificá-la. Este terrível sistema descrito pelo filme - e cuja pregnância empírica é inegável - na melhor das hipóteses produzirá mais e mais confronto direto, mais e mais capitães Nascimento. Não se oferecem soluções específicas a esta situação, porque o objetivo é denunciá-la – afinal, trata-se de uma obra de ficção - de uma maneira bem informada e contundente, mas obviamente sugere-se sua modificação. Esta modificação exige sabedoria e prudência políticas, capazes de articular medidas que envolvam, entre muitas outras, uma reforma da corporação policial.
Passo agora à questão da recepção do filme. Como uma análise sistemática da mesma não seria possível, limitar-me-ei, aqui, a contra-arrestar dois argumentos que tem sido recorrentes entre a crítica. O primeiro se refere a uma acusação de fascismo feita ao filme e seu autor. Sem levar em consideração o uso um tanto ingênuo de um conceito complexo como “fascismo”, parto da suposição de que tal acusação se baseia numa incompreensão do argumento, incorrendo, portanto, no mesmo erro daqueles que elogiam o filme pelas mesmas razões (o que me parece ainda mais grave). O erro aqui consiste em ler o filme como um elogio à política de confronto e às práticas violentas do Bope. Mas trata-se justamente do contrário! Mais uma vez: o filme denuncia a irracionalidade de um sistema corrupto que torna a política de confronto direto, e a violência descontrolada que dela decorre, o único recurso. Através da exposição das suas conseqüências brutais, o filme ataca o contexto, sugerindo sua modificação. Aqueles que acusam o filme de fascismo foram, portanto, incapazes de aprender corretamente o seu argumento, e o criticam pelo motivo errado. Agora, a respeito daqueles que, incorrendo no mesmo erro, ou seja, que leram o filme como um elogio à violência estúpida, e, ainda assim, aprovaram o filme, não há o que dizer. Não há o que dizer porque estas pessoas se situam fora do limites persuasivos dentro quais a argumentação lógica, minha e do filme, pode ser eficaz, na medida em que não compartilham dos valores que a norteiam. A respeito de tais pessoas pode-se apenas dizer uma coisa: vivem a situação que merecem.
O segundo tipo de crítica recorrente ao filme o acusa de apontar o consumo de drogas pela elite e pela classe média como o responsável pela violência. Sem considerar o tratamento um tanto caricato – ainda que não inverossímil - que se dá às personagens ligadas ao “núcleo PUC”, devo reiterar que o ponto central do argumento é a situação calamitosa da segurança pública, esta sim a grande vilã. No entanto, é verdade também que, sem culpabilizar diretamente a elite e a classe média pela violência, o filme incita as mesmas a uma reflexão sobre suas práticas. O que é muito diferente. O argumento central não exclui, por exemplo, a possibilidade de que a legalização das drogas entre no mix possível de políticas públicas necessárias para a modificação da situação. No entanto, diante da atual situação, ele nos força a pensar seriamente no que fazemos. Dentro do quadro atual, quer nos decidamos ou não pelo uso de drogas ilícitas, é impossível sermos ingênuos a respeito desse uso.
Um estímulo à reflexão sobre um determinado contexto e sobre as conseqüências de nossas práticas dentro deste contexto, nisso reside o valor de “Tropa de Elite”. Seu propósito é profundamente político e moral, sugerindo uma transformação radical da situação atual da segurança pública. Ainda que seja uma obra de ficção, sua temática e proximidade de uma certa realidade cotidiana absolutamente terrível não nos deixa espaço nenhum para o distanciamento, e, portanto, não permite o “prazer desinteressado”, característico da experiência estética. Todos os elementos “estéticos” convergem no filme, como forças retóricas, para o reforço do argumento - o que torna a trama e as personagens, às vezes, um tanto esquemáticas. Mas a bem feita construção de um “sistema” e a exposição de suas conseqüências mais terríveis, reforçada pela contundência bruta das cenas de violência explícita, tornam este filme importante. Por isso mesmo, optei neste texto por não analisá-lo esteticamente, mas sim discuti-lo como uma intervenção no debate público, explorando a qualidade e relevância de seu argumento. Apenas neste sentido, posso dizer que “Tropa de Elite” é um bom filme.
João Duarte.
4 Comments:
At 9:16 PM,
Anônimo said…
joão,
eu não vi o filme, mas quero dar a minha opinião mesmo assim. eu acho maravilhoso um certo cinema que trabalha uma rarefação (eu diria até aniquilação) da dicotomia ficção/documentário como Erice, Kiarostami e Pedro Costa para atingir uma abertura na relação altamente convencional do espectador com o cinema. ou seja, a des-convencionalização dessa relação possibilita sentimentos contraditórios, dúbios e misteriosos. no caso do padilha que cria uma ficção em cima de uma realidade atual a partir de convenções de narrativa cinematográficas antigas em que nada esclarecem para nós o lugar (moral) do narrador me deixa desestimulado. quem é o narrador? e que gestos ele doa aos personagens dessa ficção? o rio é uma cidade complexada. o que era o rio há 50 anos atrás? e o que é o rio hoje? Bope, PUC, tráfico de drogas e armas. é tudo dinheiro, não há espaço para sutilezas e nesse sentido o filme deve ser horrível. qual é o lugar desse filme? qual é a importância desse filme pra mim (moralmente)? não sei se muita. mas o texto está pontual e eu vou assistir o filme por causa desse texto que pra mim abriu um outro horizonte.
valeu
Ricardo
At 1:58 AM,
Anônimo said…
João, concordo que não é um filme fascista no real sentido da palavra. pra mim, o mais grave nesse filme é que o foco dele não me parece ser o da denúncia de uma situação de fato, apesar de servir para o debate. o filme lança mão de recursos visuais altamente atraentes que, antes, comprometem sua capacidade de dissecar realidade tão complexa como a que tenta descrever. Quando o diretor opta por iniciar o filme com a música "tropa de elite osso duro de roer" e mostra a caveira alternadamente com imagens de um baile funk, fica patente, pra mim, que a reflexão está subordinada ao show, e o show, como sabemos, segue imperativos mercadológicos que nada têm a ver como o entendimento do que quer que seja. Então, e essa é a maior discordância que eu tenho em relação ao texto, não acho que se possa dizer- em qualquer sentido- que o filme seja bom, posto que, como você disse, ele é esquemático e, eu diria, muitas vezes tosco. e sua esquematização está condicionada por um enfoque que privilegia o apelo visual. Assim, se não é um filme fascista strictu sensu, é um filme que se adéqüa a uma estética dominante e padronizada que impõe, autoritariamente, a fetichização, e a conseqüente banalização, de símbolos perniciosos. Ele conseguiu, afinal, transformar a caveira num símbolo pop, (isso foi uma opção de diretor a que parte do público, idiota, aderiu). Portanto, eu acho que ele está, no fundo, cagando e andando. Por isso eu digo que é um filme de patricinha da puc, pois ele é tão alienado quanto aqueles personagens ricos. Também discordo quando você diz que o capitão Nascimento é lúcido, ele não é não. ele não sabe onde ele está, ele tem apenas consciência operacional que seu ofício lhe deu, mas ele acredita piamente que o grande vilão é o playboy maconheiro, em nenhum momento ele põe em questão a ordem absolutamente alucinada que ele encarna - o status quo brasileiro-, portanto ele não é lúcido, ele é um peão útil.
abraço, alvaro.
At 12:58 PM,
Anônimo said…
uma vez me disseram que o capitão nascimento era a voz do diretor do filme e eu discordei. a meu ver o capitão nascimento pra começo de conversa nem tem voz própria, pois a voz-over (e não voz-off)do capitão que ouvimos ao longo do filme está na verdade desapegada do homem que vemos no filme. som e imagem não casam. e se a voz do capitão não é voz da imagem do capitão ela é menos ainda a voz do diretor do filme (que també não tem voz). na verdade, ela é uma voz qualquer, uma voz sem dono, uma voz perdida, pois uma voz inexistente. digo isso porque acho que diz bastante do que eu acho do filme. a discussão possível está fora do filme e qualquer opinião cai na infelicidade de ser uma opinião independente do filme. o filme, a meu ver, não é capaz de começar uma discussão e aí fica essa suruba de pontos de vistas diferentes. eu concordo com todo mundo e discordo também. depende da eficácia do seu argumento. o seu texto tá muito bom, mas eu não consigo deixar de avaliar o trabalho do diretor. o padilha é um incopetente genial. mas uma leitura correta de seu filme é impossível.
abs.
luiz
At 10:40 AM,
Anônimo said…
acho que eu preciso ver esse filme ai!
Em todo caso, otimo texto Joao.. enfim muito bem escrito e prazeroso de se ler.
abracos a todos ai
Rafael
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