A rotina tem seus encantos

sábado, agosto 25, 2007

“A verdadeira beleza impõe o silêncio”, começou o velho escritor em um tom de voz letárgico. “Nas épocas em que essa fé ainda não fora destruída, a crítica era um campo profissional por si mesma. A crítica empenhava-se em imitar a beleza.” Shunsuke acariciava o ar com suas luvas de casimira. “Ou seja, a crítica, assim como a beleza, tinha por objetivo último impor o silêncio. Mais do que um objetivo, esse é um não-objetivo. O método crítico consistia em instaurar o silêncio sem recorrer à beleza, apenas pela força lógica. A lógica, na condição de método crítico, assim como a beleza, tem o poder absoluto de forçar o silêncio alheio. O efeito desse silêncio, resultado da crítica, deve transmitir a ilusão da existência da beleza. È necessário que se forme um vácuo. Assim, pela primeira vez a crítica tornava-se útil à criação.”
O velho artista passeou o olhar pelo auditório e descobriu três jovens insolentes bocejando. Pensou que aquelas bocas escancaradas talvez estivessem engolindo melhor suas palavras do que as outras.
“Ao mesmo tempo, a fé de que a beleza seja capaz de impor o silêncio acabou ficando no passado. A beleza não impõe mais o silêncio. Mesmo que a beleza passe através de um banquete, os convidados não interrompem suas conversas. Aqueles que já estiveram em Kyoto devem certamente ter visitado o jardim de pedras do templo Ryoanji*. Aquele jardim não apresenta problemas difíceis: é de uma beleza simples. É um jardim que impõe o silêncio. Entretanto, é curioso que os visitantes modernos não se satisfaçam apenas em permanecer calados. Parecem não poder passar sem dizer uma palavra e franzem as sobrancelhas como querendo criar um haiku**. A beleza acabou se tornando um estímulo à eloqüência. Na presença da beleza, sentimo-nos rapidamente forçados a externar nossas impressões de alguma maneira. Sentimos a necessidade de converter a beleza o quanto antes em valor. Seria perigoso não fazê-lo. Como um exemplo, a beleza tornou-se algo difícil de possuir. A faculdade de possuir a beleza em silêncio, essa capacidade suprema, que exige sacrifício, perdeu-se inteiramente.
“É nesse momento que a idade da crítica se inicia. A crítica não tem hoje como função a imitação da beleza, mas sua conversão. Age em sentido contrário à criação. Antigamente seguidora da beleza, é hoje agente de sua conversão. Ou seja, á medida que a fé que pretendia que a beleza impusesse o silêncio caminhava em direção a sua decadência, a crítica era obrigada a assumir, no lugar da beleza, uma deplorável soberania usurpada. Se mesmo a beleza não impõe o silêncio, a crítica não se sairá melhor. Assim começou nossa era perniciosa, em que a ensurdecedora eloqüência se multiplica. Por toda parte a beleza faz falar. Por fim, devido a essa eloqüência, a beleza prolifera (que estranha expressão!) artificialmente. Começa a produção em série da beleza. E a crítica começa a despejar injúrias sobre as inumeráveis falsas belezas, cujas origens são fundamentalmente as mesmas dela própria.”

• O jardim do templo Ryoanji (“Templo do Dragão Pacífico”), em estilo japonês, foi construído no século XV e pertence à escola Myoshinji do budismo Zen. As quinze rochas do jardim foram dispostas de forma que, de qualquer ângulo que sejam observadas, só se possam ver catorze delas. Apenas ao atingir a iluminação. (N.T) espiritual o indivíduo será capaz de ver a última rocha, com o olhar interior.
• Haiku- poema de dezessete sílabas em três versos de cinco, sete e cinco pés métricos, incorporando palavras relacionadas com as estações do ano, resumindo uma impressão ou um conceito.(N.T)

Trecho de “Cores Proibidas”, de Yukio Mishima. 1951

enviado por Alvaro Fagundes.