Me recuso a admitir que a vida seja mera casualidade. Por exemplo, outro dia. Estava sentado num meio-fio da Rua da Lapa, pensando no que tinha feito para dar errado, na mão meu coração ainda quente, e dentro de algum salão meu desamor, quando conheci um casal que passava.
A mulher parecia bastante embriagada, os lábios quebradiços de tempo demais à beira do abismo, uma peruca africana dessas que se usa no carnaval – estávamos em fim de maio. Me pagou uma lata de cerveja e pegou uma para si na barraca ambulante de uma mulher a quem se dirigia como “loirona” – uma negra retinta com a boca grande que mantinha aberta, mas que raramente dizia algo.
O homem permaneceu de pé, sem sorrir, os olhos fundos e distantes, uma cabeleira de cantor de bolero desempregado, mas percebi delicadeza nos seus olhos, dor e delicadeza, porque os estranhei de imediato, e normalmente quando se estranha algo de imediato, pode ser a delicadeza à espreita. Mas a dor se sobrepunha.
A mulher sentou-se ao meu lado, eu que estava com frio e suado, enxugou minha testa com seus lábios, enquanto seu homem permaneceu com os olhos no vago, em pé. Então ela me sussurrou na orelha, depois de um abraço: “sonhei contigo ontem e você era meu filho”.
Eu não estava em condições de dizer nada àquela altura do campeonato, zero a zero e o empate era deles, mas a mulher tinha algo nos olhos também que me impedia de olhar para outro lugar. Era como se seus olhos fossem outro lugar, um único, e aquilo me envergonhou. Talvez porque fosse vesga.
Não me lembro muito bem do teor da conversa. Sei que ela lacrimejava, e foi uma daquelas conversas nas quais a resposta vem antes da pergunta, como se um magnetismo devasso se infiltrasse de repente na minha alma desbotada, através dos olhos dela, reflexo dos meus.
Em pouco tempo foram embora. E eu fiquei ali sentado, bebendo cerveja com loirona, que ainda me ofereceu um cigarro, depois de eu ter dito que não fumava. Disse: “guarde e dê para quem você gosta”. “Ela também não fuma, loirona”, eu disse, “mas vou guardar de qualquer forma”. Carlton curto de filtro amarelo.
No bolso da minha camisa de flanela puída, tamborilante solitário, o cigarro montava uma cena tão silenciosa e irreversível que uma lágrima escorregou pelo calombo alquebrado do meu nariz velho de guerra e desilusões acatarradas.
“Sua lágrima parece uma estrela”, disse loirona sem me olhar. E continuamos a beber em silêncio.
Um pouco de tempo passou sem que disséssemos nada. Um casal amigo – ela que um dia tinha tentado ser minha sem ceder o mínimo – passou andando. Ele esperou do outro lado da calçada, uma sombra clara na escuridão dos tempos. Ela veio até mim. Andava como um dia eu havia dito que era bonito seu andar.
“Tudo bem contigo?”, perguntou.
“Sim”, eu disse. “Essa é minha amiga, a loirona”.
Dobrou a cara.
Perguntei: “Você está com ele?”.
“Sim”, ela disse, “por enquanto sim”.
“Gosto dele. Parece ser um cara legal”.
“Preferia você... Se você se preferisse um pouco mais pelo menos”.
Me virei para loirona, que tinha esticado as sobrancelhas com os olhos baixos.
“Você vê, loirona, estou fadado”.
Minha amiga aproveitou que olhei para o lado, esculhambou meus cabelos na testa e disse: “Te cuida”. Sempre o mesmo pedido, na mesma hora ingrata: desapego em forma de culpa.
Atravessou a rua e se encaixou nos braços do camarada que tinha uma boa cara, mas muito clara para o mundo como era. Se perderam no filete de chorume da Rua da Lapa, que leva sempre, quem ainda tem como, para longe dali.
Loirona não olhou para mim quando disse: “Tua alma é cigana... O mundo é teu”.
Eu me sentia arruinado. Mas algo aconteceu naquele instante. Como as guelras de um peixe que volta para o mar enquanto o pescador ainda ri. Uma espécie de segunda chance. Ainda vi um sujeito que parecia o que imaginava que eu seria como pai, antes de me esquecer como fui parar em casa.
No dia seguinte, voltando do trabalho a pé, observava as pessoas apressadas nas ruas, umas tristes, outras desligadas, nenhuma alegre; mesmo as que riam, era por outro motivo, por conveniência ou constrangimento – casais de meia pessoa sob a fumaça da cidade – e eu pensava que estava talvez enlouquecendo de verdade, porque não conseguia entender minha própria língua e, portanto, o que as pessoas diziam. Como uma foto que caiu da cortiça porque a cola endureceu e rachou.
Na frente do cinema, vi saindo pela porta, cabisbaixo, o rapaz sério dos olhos fundos e cabeleira de cantor de bolero. Um jornal debaixo do braço e um copo de papel na mão. Pela fumaça, café fresco. Parou na minha frente. Eu tentei olhar as horas, velho truque dos encontros modernos, mas tive que parar para não trombarmos.
“Lembra de mim?”, ele disse.
Seus olhos estavam congestionados, como os meus. “Foi uma dura bebedeira”, pensei.
“É claro”, eu disse. “Escuta, cara, diz pra sua mulher que eu agradeço pelo que ela fez ontem”.
“O que ela fez ontem?”, ele perguntou.
Na claridade do terror citadino, vi marcas e manchas no seu rosto estropiado. Parecia indefeso sob a luz desavergonhada dos postes, que riam. Mas ainda mantinha a mesma delicadeza.
“Ela me deu uma noite a mais”, eu disse sem pensar, como faço quando falo com estranhos.
“Batemos com o carro ontem”, ele disse mecanicamente. “Ela morreu”.
O volume da rua em volta cresceu e eu vi tudo num borrão de cinza e vermelho e amarelo. Não consegui falar, nem olhar para o rosto do homem, apenas engoli o cuspe, que não veio.
“Desculpe ter que te falar assim”, ele disse, “mas não conheço outra forma”.
E apoiou sua mão no meu ombro, deixando o jornal cair no chão.
Apanhei seu jornal, cocei a barba, olhei para um lado, para o outro, e disse – não sei por quê:
“O amor nos traz os mortos e nos leva os vivos”.
Imaginei que ele não teria ouvido, porque disse muito baixo e para dentro.
“Eu amava aquela mulher”, ele disse pausadamente – as pausas nos lugares errados.
“Eu sei”, eu disse. “Quando vocês me encontraram no meio-fio eu pensava a mesma coisa
com relação a uma mulher. Não parece que exista qualquer solução para isso”.
“Preciso ir embora”, ele disse repentinamente, e espremeu os lábios. Ia chorar, mas se conteve. Estávamos na saída do cinema e um casalzinho passou sorrindo, a menina soltando bolhas de sabão.
“Tudo bem”, eu disse. “Não sei bem o que te dizer, desculpe”.
“Sorte no amor”, ele me disse.
E de alguma maneira, por mais banal que possa parecer, e talvez seja no banal que esteja a verdadeira questão que relutamos em admitir (e por medo compliquemos as coisas), aquela frase acumulava tudo o que eu precisava ter ouvido em toda a minha vida.
Virei e segui andando. Olhei para trás depois de dois segundos e o homem havia desaparecido. Havia fumaça espiralada na direção do céu de gris. Algumas pessoas comentavam num círculo sobre duas asas brancas de anjo, caídas na sujeira do chão molhado de lágrimas e podridão.
Leo Marona