A rotina tem seus encantos

sábado, dezembro 30, 2006

O amanhã dos bosques verdes e da manhã de todos os sóis


Repulsiva esperança. Sutil como o diabo. Quem me tenta, Aquele que se esconde, e me escancara. Essa atração pelo pavor. A esperança surgiu do nada. Virei o pescoço e ela já estava ali, mais perto de mim que meu próprio rosto, toda brusca e verde, invadindo meu segredo. Pousou bem no ponto onde meu sonho se espreguiçava, leve virava o rosto para fora, reluzindo as mechas soltas pela face. O sol vinha de dentro de seus olhos. Trespassava a fortaleza castanha, por magia-desencanto, turva obscura, opaco jeito de se resguardar, se esparramar na pele do ar. Os raios se emaranhavam em seus negros cílios longos. Quando enfim libertos, refulgentes. Desmaiam meus gestos neste excesso de claridade marfim. Camisola e coxa. Miragem roça desejo. Seus lábios rasgavam um sorriso de pequenos cristais, engoliriam mares e pernas, num só intento, me olhassem. Eu abriria tudo, como páginas de papel-seda, roçadas uma a uma, desmilinguindo ao encontro da saliva, afogada de ebulição. Ela não é feia, a esperança, vai além do asqueroso. Sua vida é um insulto. De esboço-nuvem, meu desejo ganha corpo, e a sua falta. O maior querer coincide com uma rejeição tão reles, distendendo o sublime numa reta. O límpido sonho secreto do covarde. Como se explica? Desígnios. Uma esperança é uma folha em estado de vida veloz. (Estão as duas na origem do amor.) (Incômodos.) Liguei. O ato que arrancou o peso para fora. Implode o tempo que se comprimia numa espera, chumbo-derrear, folhas ao vento. Se desmancham meus planos, meus intentos. Nada mais vejo ao redor. Pés afundados numa poça aberta de nada. Vejo-a, agora, ela percorre o fino umbral da janela. Como estilete, roça o metal ao longo de todo o colo do bicho. Suas patas magras incomodam pela destreza excessiva – elas se alongam e dobram e abrem como engolissem minha habilidade, são tão frágeis. É excessivo, seu gesto, mínimo que seja. O equilíbrio é apenas uma impressão, a primeira, bem de perto, está tremendo, tanto. Para minha brisa para ela ventania. O mundo se deforma à sua semelhança. Nela adivinho o que quero ouvir. Oráculo do inferno. A esperança é maior do que a janela, maior do que o quarto, maior do que eu. Também a noite diminui aos pés da minha janela. A intensidade do verde sobrepõe-se ao preto do fundo, preto sem fundo, sem fim, diamante. Olho-a fixamente. Contemplo o crescer do meu espanto. Percorro as suas dobras suculentas, suas asas no contorno da carcaça, as crateras de que são feitas seu rosto. Tanto a olho que sinto suas patas picando meus glóbulos. Pisco, pisco! Elas vêm por dentro, rompem a película da retina até sentirem o ar, por fora. Uma leve coceira, da qual desconfiaria, gesto de mão jogado fora, e logo esqueceria, no embotamento corriqueiro da minha necessidade de ir, simplesmente ir. As patas todas escapam, pululando suspensas, enquanto corpo denso da esperança fica atravancado na curvatura interna da retina. Pisco, pisco, as pontas das patas arranham minhas pálpebras, as patas se enervam, rasgando-as. O corpo não consegue sair, e fica preso, impedindo meus olhos de se fecharem. Meus cílios acariciam suas asas verdes, murchas, incapazes de voar. Anjo verde renegado, decaído no meu colo. Seus olhos vermelhos encostam no meu. Berro. Só quero esquecer. Fico onde estou. Impossível olhá-la mais de perto, meu olhar omisso. Ainda que a espreite, confesso, ao ritmo da minha ansiedade, apenas para constatar a sua presença, anulando de antemão a surpresa do ataque, nesse silêncio. Mesmo sabendo: o medo é mútuo, também o tem a minha esperança. Aconteceu da fragilidade ter sido absolutamente estirpada do meu campo de visão, precisão cirúrgica destes meus gestos oníricos. Não me cabe. Ela é a crosta do esqueleto, não menos, com duas bolas vermelhas na cabeça, prestes a escapar deste cerco de mentiras. Às vezes, até me esqueço de sua presença. Retorno em movimentos habituais pela casa, de ir e vir, cá e lá, como em vago fluir. Então, de novo, inesperadamente, deparo-me com essa coisa escancarada. Um verde repulsando no abismo. Retomo pouco a pouco o fio do sentimento que ali eu havia abandonado. Arrumo e desarrumo os objetos, os pensamentos. Não desejo vê-la indo embora, é verdade, isso seria enfim a morte. E o depois é sempre uma armadilha. Deu-me as costas, o bicho, ele está prestes a saltar. Não sei porque ele pára. Ele pára e fica. Indefinidamente. Ele pára tanto que pára dentro de mim. O que o tem no parado? Nem a minha cortina pára como esse bicho. Instinto e expulsá-lo enquanto o engole meu olhar, para a garganta sem fundo da memória. Ela esculpe lembranças, estátuas do passado. Há verdade demais. Há uma vida que já temo não poder continuar. Não vai acontecer, seja o que for. Este alívio me renasce toda. Embora já comece outra vez. Uma desconfiança, e logo a dúvida contaminada pelo meu ceticismo. A esperança ainda não foi embora. Meço meus passos com os dela, meu espaço tem a sua dimensão. Ingênuas e profundas, entregues ao mesmo, como se novo ele fosse. Ela tão verde, eu imatura. Somos a mesma, dormimos no mesmo vício, bebendo da mesma doença. Não sabendo ambas o ponto de encontro, não demarcado, espraia-se indefinido. Foi desprevenido vivo. Foi instante-vermelho-fagulha. Nem se tem corpo ou se para sempre ficará num único segundo em que a possibilidade encontrou o infinito. O que será esta maldita esperança? Nunca indo embora, ela é o adeus. Qualquer um deles. O que se dá ao momento perdido enquanto sonho, adeus que o sonho – realizando-se – acena ao seu criador. A rejeição é toda a contra-face da esperança. E esta repulsa, meu Senhor? A repulsa está em mim, a repulsa sou eu. Meus movimentos são flagras de fugas, fugas de fugas fugas etc. Tudo vai embora, só fico eu com essa cisma do ficar. Sem raízes, sem peso, sem certezas. Fico e fico novamente. Fico como quem não sabe andar. Fico como um sussurro, até distanciar-me, baixio, o suficiente para sobrar-me lembranças de um rio meio esquecido, meio inventado. Assim o que passa se redime. A repulsa é a própria realidade. Prostrada ao canto do sofá, ouço vozes atravessadas como flechas. Quero tudo o que não posso ter. No fundo, sou aquela que é a incapaz de me querer. Meus desejos sobem-me e multiplicam-se, multidões de desejos bastardos, espocando como bolhas de carne, corrosivas. Ruminam meus intestinos. Infernal inferno pálido. Estatelada, me desfaço lentamente. Deixo peso passar. Venta vento. Brinco brinco. Resfrio-me. Rio de nadas e ilusões. Nada é preciso. Portanto, não tenho medo. As voltas se responsabilizam pelos meus acasos. Sete vidas vezes sete chances. Sete cores, mil espelhos. Absoluta é a falta de qualquer certeza. Todos os caminhos se abrem em dois, sucessivas aberturas, rodopiar de folhas-sedas, cedendo ao vento. Sou esse ouvir aberto, porvir de mim mesmo. Separo os membros do corpo, como estrela morta. Como desabasse sob o chão. Deixo a cabeça pender para trás. Abro os olhos. Há uma lúcida estabilidade no teto. O vento sopra, e tudo reduz-se a este sopro. O sopro é ainda maior que a esperança. Leva embora esta noite, leva o estilete improvisado na janela, leva também o meu amor. Clara está a combinação do que ali me atraía, ao mesmo tempo repelindo-me. Adormeço à minha revelia. Descanso. A janela aberta, caso quisesse voar embora a esperança. Ela sai, finalmente. Saiu voando a minha folha de encantos, acordando-me numa manhã esmaecida.

(daniela szwertszarf)

sexta-feira, dezembro 29, 2006

constrangimento mais terno o
dos corpos que se esquecem à
primeira vez de todas as vezes,
insuflando de tempo essa bolha,
membrana mucosa como mácula
de ventre, que cisma em sempre
almiscarar o paladar de quem chove
seu açúcar em um poema experimental,
tessitura qual sonata de stravinsky,
licença poética do soneto que não se tece,
peripécia de quem sabe o curso e
o percurso dessa brisa no trigal das
invejadas virgens e deste rebento, o tempo.

Cecilia.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

“o pequeno suicídio de e.e. cummings”

r
o
o
m
suicide rose a selforgot
sometimes imagine but I
somehow real smiles not

for moment blood hands
easier would who dance

cloud midnight t(ear) t(error)
trigger crash mirror near narrow
this is myself on the way of
a
n
t
s.


Leo Marona.

segunda-feira, dezembro 25, 2006

Dessoneto em valsa

Ela larga o corpo fausto sobre o meu, exausto, e
leva-me à boca trêmula o peso do primeiro beijo,
sorri um escândalo de espasmos proibidos e
serra-me os olhos em seus gemidos líquidos...

Ela encaixa o ouvido em meus mamilos rijos e
põe-se a ouvir o eco de minha infantil alegria
amanhecida nos rumores de nossa assimetria.

Ela adormece em meu úmido castelo e
Agarra-me os cabelos com seus dedos flácidos,
Sonhando baixo para não acordá-lo, ele
que, deitado ao lado, alinhava o elo.

E ele escorre, por entre a nossa, sua languidez
se apossando dos dois corpos nessa mesma valsa,
um, dois, três; um, dois, três; um, dois, três...

Cecilia Cavalieri

terça-feira, dezembro 12, 2006

“a morte quase banal de um homem quase comum”

um homem sentado na escuridão do seu pijama
enquanto a morte se atrasa mas espreita pelas cortinas
através de olhos de festim como pústulas envelhecidas.


e o homem sentado sobre o genuflexório da sua alma
espera a morte na cama tal qual catarata noturna
que se atrasa sorrindo em sangue entre os dentes
conforme a louca suicida disse certa vez.


o homem transpira pensamentos incompletos sobre seres completos
(seres ausentes ou, pelo menos, seres incompletos com astúcia)
enquanto luas e estrelas esparramam-se sobre seu calção frouxo
e de seus dedos brotam as sempre reticentes palavras de formol.


o homem então se vira, pede licença à areia dentro dos olhos
e toma um gole nauseabundo do seu suco de uva reumático,
pensando em artroses e desavenças passadas em panos de prato sujos
sobre a mesa esquecida do dia de ação de graças.


o homem toma o suco direto da caixa
e recorda-se de uma vagina toda raspada, de outros tempos
como se fossem outras vidas, pensa no poeta que morreu de “insulto cerebral”
e, em seguida, lembra do momento mais penoso do seu último dia,
quando, além dele, duas pessoas foram hipócritas e educadas,
sorridentes ao mesmo tempo no vácuo fúnebre do elevador de porta pantográfica
como os dentes que ficaram de herança para os germes nos dentes postiços
como hienas invisíveis dentro do copo d’água, indiferente à noite que não acabaria.

Leo Marona.

sábado, dezembro 02, 2006

No, Plato, no

I can’t imagine anything
That I would less like to be
Than a disincarnate Spirit,
Unable to chew or sip
Or make contact with surfaces
Or breath the scents of summer
Or comprehend speech and music
Or gaze at what lies beyond.
No, God has placed me exactly
Where I’d have chosen to be:
The sub-lunar world is such fun,
Where Man is male or female
And give Proper Names to all things.

I can, however, conceive
Tha the organs Nature gave Me,
My ductless glands, for instance,
Slaving twenty-four hours a day
With no show of resentment
To gratify Me, their Master,
And keep Me in decent shape,
(not that I given them their orders,
I wouldn’t know what to yell),
Dream of another existence
Than that they have known so far:
Yes, it well could be that my flesh
Is praying for “Him” to die,
So setting Her free to become
Irresponsable Matter.

Não consigo pensar em nada
Que eu desejasse menos ser
Que Espírito desencarnado
Sem poder comer ou beber
E nem contactar superfícies
Ou sentir os cheiros do estio
Ou compreender palavra e música
Ou olhar para o que está além.
Não, Deus me colocou bem lá
Onde eu teria escolhido estar:
Bom mesmo é o mundo sub-lunar,
No qual o Homem é macho ou fêmea
E dá Nomes Próprios às coisas.

Posso, porém, conceber que os
Órgãos que Me deu a Natureza
Tais as minhas glândulas endócrinas,
Dando duro vinte e quatro horas
Sem mostrar ressentimento,
Para satisfazer-me, o Mestre,
E manter-Me sempre em boa forma
(não que eu lhes tenha dado as ordens,
pois não saberia o que gritar),
sonhem com uma outra existência
que não a que até então conhecem:
sim, talvez minha carne esteja
rezando para que “Ele” morra
e, livre, Ela possa tornar-se
Matéria irresponsável.

(J.M.J)

W.H. Auden. In.: Poemas. Tradução e introdução de José Paulo Paes e João Moura Jr. SP: Companhia das Letras.