A rotina tem seus encantos

segunda-feira, outubro 30, 2006

"morte e vida quarta-feira cinzas”

O amor havia se fantasiado de cigana. Nos encontramos em Santa Teresa, em meio a pensamentos de confete, e terminamos numa cama desfeita, arrepiados de saliva. Depois que o amor tirou a fantasia, ou melhor, depois que a fantasia foi arrancada com os dentes deste que vos confessa, não houve sono nem sexo, mas houve tudo, sem nexo, pois era o amor outra vez e o amor, quando é outra vez, não admite sono nem sexo, de modo que dormimos de olhos abertos para dentro, abraçados enquanto os ponteiros do relógio derretiam sobre as notas soltas de uma orquestra dissonante no fundo do corredor já sem prédio, dentro do bairro já sem cidade. Não podia amá-la, mesmo fantasiada, afinal não se ama o meio, o amor, mas o fim, aquilo que ele não diz. E no vazio do embalo coxo de uma dança com poucos movimentos calamos juras de carnaval com beijinhos de esquimó e asas de borboleta foram encontradas dentro dos nossos bolsos, dos meus e do amor travestido de cigana inamável. No dia seguinte, como era de se esperar, ele o amor, ela a cigana, já não estavam mais lá: a fantasia era minha. Olhei no espelho e nem eu: trapos sobre um corpo estranho atravessado por idéias de sorriso no choro incontido em gases violetas. Não era eu mesmo, mas foi tão bonito! Da pia do banheiro fiz a manjedoura. Das lâminas do êxtase a profecia. Do pulso as água de minhas palavras vermelhas. E ao lado da barriga aberta de sonhos inatos, nada além de uma carta escrita com letras gregas, trêmulas de vinho, dedicada àquela que se foi sem ter vindo. Escorreguei pelas escadarias sem saber que as escadarias eram serpentinas desenroladas conforme passos. Quando cheguei no não sei onde chegar, percebi com os dedos dos sonhos – ou seria ela? – que com sorrisos não se cabia mais nas ruas. As pessoas em volta, em minha homenagem, insistiam em ignorar minhas perguntas. Mas elas cabiam, pois carregavam pastas e frases postiças, além de carreiras de tosse. Uma ofendia a madrugada, agarrada a um poste. Outra acompanhava um funeral, cercada de mais alguns conhecidos. Entre eles um outro, muito parecido comigo, por sorte deitado, mãos cruzadas de céu, era levado pela ressaca de mãos e lágrimas, tal qual o mito de Noel. O sol fazia barulho de expectativa. As crianças estavam embriagadas, obscenas, envergonhadas dos adultos. E os adultos esfaqueavam sombras, desejo de serem reconhecidos pela própria emoção. Pus as mãos nos bolsos, pus atrás dos olhos: as asas haviam se desmanchado em cinzas da quarta estação. O sol tocava surdo a chuva reco-reco o ritmo de outro mundo onde as coisas arrastavam a pressa de um mundo pintado no interior dos anos que não passaram; ficaram deitados nos bancos de praça sussurrando nomes antigos cobertos pelas páginas sujas das notícias de ontem: olhos necrosados pelo sentimento do mesmo mundo faminto, tão perto, tão colo, tão longe, tão calo, apesar de nosso, que é hoje e sempre, meu amor. Não amo porque sou o amor, morto apesar de eterno, asco de asas pálidas perdidas como olhos pintados na cor esquálida dos bolsos secretos, apesar do que o cérebro degolado monta quando não quer se despedir do adeus.

Leonardo Marona.

terça-feira, outubro 24, 2006

Os outros formam o homem; eu o descrevo, e reproduzo um homem particular muito mal formado e o qual, se eu tivesse que moldar novamente, em verdade faria muito diferente do que é. Mas agora está feito. Ora, os traços de minha pintura não se extraviam, embora mudem e diversifiquem-se. O mundo não é mais que um perene movimento. Nele todas as coisas se movem sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, e tanto com o movimento geral quanto com o seu particular. A própria constância não é outra coisa senão um movimento mais lânguido. Não consigo fixar o meu objeto (ou seja, eu mesmo). Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o neste ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem; [...] Daqui a pouco poderei mudar, não apenas de fortuna mas também de intenção. Este é um registro de acontecimentos diversos e mutáveis e de pensamentos indecisos e, se calhar, opostos: ou porque eu seja outro eu, ou porque capte os objetos por outras circunstâncias e considerações. Seja como for, talvez me contradiga; mas, como dizia Dêmades, não contradigo a verdade. Se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em prova. (Montaigne, Ensaios; livro III, cap. II, [1588]).

domingo, outubro 22, 2006

“loucura noturna universal”

amarelo de febre – louco
meio-terno, meio-morto
distante, iluminado
solitário, seco
incendiário
esgotado
total.

hoje à noite estou
do outro lado
do eclipse
como se
perdido
na luz.

mas isso não
me faz
sentir
mal.

pois se assim
é comigo,
é assim
com o
sol.

Leo Marona.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Por fim, a praia. Teus olhos molhados e nele não vejo mais nada.Sim, eles são verdes e brilhantes, mas há qualquer coisa de lúgubre nos ângulos que se formam, e, também, os teus dentes atrelados um ao outro - é bem triste- não me dizem mais nada. Nada.Atravessamos a rua apinhada de carros e caminhões de carroceria extensa (os ônibus cospem fumaça negra), atravessamos a rua em ziguezague e não nos damos as mãos- sim, é muito triste. E se pedimos mais uma cerveja, não sabemos o porquê. Não sabemos a quem brindar: não há mais tanta alegria em nossa conversa. Não há. Um peixe estremece no balde vazio antes de morrer. Por fim, quando chega a hora de dormir, não escutamos mais os grilos, as ondas ou os gatos que deslizam pelos telhados úmidos, nem mesmo um cachorrinho uiva para a lua, nada, nada; é bem triste. Simplesmente viramos cada um para o lado e caímos em sono profundo navegando além e sem prumo por sonhos blindados, distantes, escuros.

enviado por Natércia Pontes.

domingo, outubro 15, 2006

“roçam-se os pés”

acho que
todo mundo
um pouco
no fundo
sem saber
quer o amor
que é o fruto
de outro sigilo
secreto sepulcro
mal-estar noutro
sem saber que quer
mesmo sem dúvida
um canto de vírgula
que sirva de túnica
às tardes esquecidas
que curam e ardem
nas noites sem lua
nuas como aquela
silhueta sem foco
que falta na cama
ao lado do cheiro
do beijo de olhos
do fim de semana:
herança de traças.
agora é tarde e frio
os cílios se dobram
e existe certo vazio
que só preenchemos
com calor hesitante
e os pés enlaçados
carregam o instante
gelado com gelado
é igual a dois lados
para sempre sólidos
inquebrantáveis que
quando perfuram poros
marcam nossa distância
com hematomas lilases
como flores de inverno
na estampa do lençol.
mas bem lá no fundo
quando a luz falece
todos nós esperamos
alguém que nos ame
como se não soubesse.

Leonardo Marona

quinta-feira, outubro 12, 2006

Newton.

Observa: a fruta que cai.

Imagina agora que uma mão puxando-a pelo cerne,
desde em-flor, finalmente rompeu, da mãe-árvore,
o talo, o qual, feito velho, incapaz
de resistência
a esta mão, sem braço,
cedeu:
tombou o fruto, espatifado.

Agora pensa que esta mesma mão puxa
pele, olhos, cabelos e não só, também:
entranhas, baço, fígado e rins. Ainda: aplicada
firme sobre os ombros,
pressiona, tenaz e sempre, até que,
gastos, tristes, incapazes de
opor, tombamos.

Não espatifamos
Vergamos e

Caímos,
Devagar
Mas
infalível.

João Duarte. Outubro de 2006.
“sem saída”

todas as frases
são de amor.
mesmo a frase
de ódio
é na verdade
herança
de um amor
incompreendido.

Leo Marona.

sábado, outubro 07, 2006

Walking

enviado por Lucas Teixeira.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Poesia ou crônica ou a rotina tem seus encantos:

Régel verdinho e Raidegel abóbora.

- Bom dia, moço, o senhor teria “A idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita”.
- Desculpe, não entendi.
- É filosofia...
- Ah, sim, filosofia. É por aqui. Qual é mesmo o nome?
- Kant, com K.
- Sim, deixa eu ver... (busca nas prateleiras). Não, não temos. Vou conferir no sistema... (busca no computador). Não, senhor, realmente não temos este. Mas olhe só, temos outros (aponta para as prateleiras). Olhe ali ó, tem o Régel verdinho..., tem também o Raidegel abóbora...
- Raidegel abóbora?!
- Sim! Ali ó, na terceira fileira.
- Mas eu queria o outro...
- Só serve aquele?
- Infelizmente.
- Ah...
- Então tá, obrigado.
- Nada.

João. Outubro de 2006.
O Pedro me pediu que divulgasse estas duas peças do Fischer: "Santa Croce" e "O Rinoceronte". Ambas estarão sendo apresentadas na UniRio, respectivamente, no sábado e no domingo, com duas sessões em cada dia, às 17 e às 19hs.