PAPEL E FOGO(fragmentos)
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Segredos anis destoam a paisagem, vasos vermelhos se quebram ao encontro das formas-transformação, ao longo dos ares, os vejo por todo canto, a desvelar o inexistente. Quem quer morrer nas lojas enfeitado de jóias até as ancas largas-douradas? Senhoras-infinito passeiam pelas sombras, enquanto cartazes anunciam a sessão do encontro essencial. É chegado o tempo das hordas de festins enfastiados. Homens de gravata em greve de fome – que amarrem o trabalho ao vôo das lesmas. Para abraçar a multidão é preciso ter sonhos de ouro, braços de magia violeta, manhãs de desolação! Ó, dia que nunca chega! Insuportável beleza de graça! Amores reluzentes! Que nunca mais se veja viçar a hipocrisia. Que nunca mais se assassine um dia como este – tão branco, tão preto! Dia de tua volta, minha delícia. O fim chegou ao fim.
(Desperdícios, desperdícios, desperdícios.)
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Caminhos arbitrários de mim, fui indo pela alameda que recolhe os mais duros olhares das outras vidas, à margem de um grande acontecimento. Piso nas dores, desdobro meus segundos em borboletas das mais várias cores escapando das minhas mãos, dos pulsos abertos gotejando o vermelho incrível na prévia dos meus passos. Quase como um sussurro, quase como uma sétima maravilha, socorros voejando ao meu redor. A miséria das impossíveis cascatas em desejos de nem o que será nem o que não pode ser. Arrebento a solidão contra a parede do meu quarto. A estase absurda dos objetos trepida. Estou a um passo de.
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Hoje. Hoje acordei na casa onde nasci. Minha mãe me viu a menina, e eu encolhi no medo do mundo, esta teia das glórias de triplas faces. No colégio da infância, onde aprendi a obedecer, e as menos complexas equações da química moderna – meninos roubavam meu orgulho, no parque das areias revoltas, onde aprendi a brincar. Os professores nunca entraram na conspiração de sonhos típicos que tramamos nos banheiros. Salvo um, salvou-me, ídolo de jeito sisudo no contraste das delicadezas. Aos quinze anos, comecei tudo outra vez, me afoguei nos velhos saberes. A idéia da crítica devorou vestígios da felicidade. Memória d’água em franca ebulição. (Ando à procura da curva em torno de mim.) Quando aprovaram-me para a vida, aos 18, assustei-me diante de minhas artérias entupidas. Nunca havia ouvido sobre o bicho que mora no meu peito, nem a prece contida na respiração acelerada. Sou mesmo uma boneca, e nada de críticas ferozes.
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Vem-me andando como um balão antigo, o homem blusa vermelha abaixa cabeça branca, eu passo em vias de desfazer-me folhas, nunca o olhei. Hoje chuva duradoura, as promessas se prolongam nos carros indo longe, estou com um frio daqueles de não se ter consolo. Talvez seja a hora do outro, talvez não seja agora. Deixo deixa desleixo, farpas de instantes em roupas surradas, bueiros fundos revelam meninos, minha cidade morre toda manhã. As fachadas ilustres da decadência se refletem no sol a pino. Curto-circuito dos vazios, reflexos lançados ao léu das direções. Nem a noite se acredita, e falta tão pouco para acordarmos. Deixo deixa desleixo, eu prefiro ficar em silêncio, minha vida mingua em cantos indiferentes. Até parece que era para ser tudo importante. Vou esquecer, enquanto atravesso entre as pontes, (e essas ruas que apertam minhas distâncias), como se desaba no caminho que só segue adiante. Tenho levado sustos, a abertura dos olhos não cede espaço, o coração continua apertado.
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Quando sentes a paixão inflando dentro, os braços segurando a gigante-bolha-firmamento, tu és uma estrela em disparada, luzindo, zindo, záz! – cicios aproximam-se sorrateiros, vozes vazam pelas brechas de quem és, rodeiam teu intenso sentimento, assassinando-o pelos limites. Louvemo-los. São os carrascos da pequenez. Inocentes como vampiros infantes. Freiam-no antes que lhes atropele. Nem no inferno há lugar para ti. Ecos, amigos, fantasmas, vindos de mundos distantes onde a lei é que se esconda cada coração em celas de celas de celas (...), súbito emergem como bocas do abismo: nada é novo, nesta vida, não te inquietes. Já já verás o sofrimento mais terrível, aquele que nunca chega, só se anuncia. Vês a ti mesmo, então, vivendo atrás dos ecos, fugindo e esperando. Trancado no preciso entre, uma precisa confusão, um preciso tormento de segredos. Segues entre segredos que te espreitam pelos rastros dos teus passos. Se deixas aberta a porta, vês logo minguar tua flama, fogo tíbio. Impotência atroz calando teus gestos. Respiras, então, respiras forte, infla teu vazio, somos amigos rarefeitos submersos no sonho colorido. Somos compactos e pesados, enveredados por uma grande lógica. Tacanhos e diminutos frente ao exército das solidões embotadas. Renego, nego, negro doce sabor de viver. Martelo contra a minha rotina o quadro dos hábitos, quadrado dos atos. Estou segurando os afetos em derrisão. Estou com medo da liberdade. Um resto de voz tímida luta contra este inferno, elege-me a mais doce, mais bonita, mais valiosa peça do salão dos espíritos ermos, ébrios, eus.
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Não quero fórmulas para nenhuma vivência – acontecer em plena desatenção – pontos de prata-estelar estourando nos tímpanos de ébano contidos sobre as calçadas – ouvir o estrondoso acorde de sublimes efeitos – portões de ferro abrindo-se no meu peito. Banhar-se com o desenconto dos acasos de verão. Destituir as ausências de seus sentidos profundos, sorrindo largamente para qualquer estribilho - desinventar inteligências, parir dez noites por dia, ao longo das alegrias surpreendidas com o ar. Por que decolar hoje, se o amanhã predestinado aos futuros exatos? Por que não aprender com a cegueira de ninfas em eterna grega flor? Vou desinventar a beleza até que tudo decida começar em mim. Despojada enfim de todo orgulho – o anúncio da minha libertação. Da bagunça monumental de caminhos evolui um cheiro de algo antigo esquecido dez-mil anos por minuto, todos os perdões por tempestade.
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Quanto mais segredos ela acumulava, mais sua fisionomia acusava uma distância. Querer chegar-lhe perto, com um carinho como se eu fosse uma santa, idólatra profana de vidas mal-tratadas, era escancarar no impossível um rosto de monstro adormecido pelos anos imprensados entre mentiras e despautérios. Ela sabia, eu sorria, já virando para o próximo passo, com uma janela a mais fechada nas minhas mãos, outro não, apenas, e tudo seguia como uma grande indiferença.
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As manifestações naturais, mais escassas e mais, quando apareciam, como uma verdade contida rompendo um muro de ferro, me flagravam num desentendimento infantil, que eu logo convertia numa fortaleza construída ao redor da área de possível invasão, até que, numa compreensão deslizando suave até me alcançar, envelhecer para mim significava a gradual vitória do meu vício sobre a minha inocência, e morrer não seria mais a entrega dos meus tormentos à sua desaparição, mas a compreensão do meu avesso no seu não ser, e eu não morreria por não haver mais eu.
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Contornos se liberam no espaço, formas se amparam (se derruindo para se encontrar), num amálgama de cores velado pela minha desatenção. Desalinho do teto, arestas se desapegam, decaindo em cascatas de pouca fluidez. O devagar concede elegância a esta queda. Dança de linha retas. Crise da estrutura. Estamos em todos os quartos, quase no tempo do mesmo. Aqui, logo ali, como nos fugindo, nos encontrando, sem atalhos, só os brutos caminhos. Paredes de intenso brilho branco, gigantes placas de resinas plásticas, rearrumam-se, recriando os limites – no acompanhamento de sua presença. Labirinto disperso num rearranjo por ti guiado. Sempre dando-lhe passagem. Você, suave alabastro em movimento, cabelos negros e flores vermelhas decalcadas pela pele nua, no seu andar ganha relevo o meu carinho por todas as coisas do mundo.
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Você não quer que eu morra, e eu vou morrer. Deixe-me morrer como rios ressecam. Veja meu rosto cru. Árvores dilatadas nos braços; pelas pernas, filetes de roxo-prateado. Veja-me mil anos, ama-me ainda mais.
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(daniela szwertszarf)